Friday, January 08, 2021

Caricaturas Crónicas - «O John Bull» por Osvaldo Macedo de Sousa in Diário de Notícias de 11/10/1987

 Os símbolos nacionais criam-se por necessidades patrióticas, e se o Zé Povinho nasceu como desprezo caricatural por um povo amorfo e sem brio, o John Bull nasceu como orgulho taurino, como «fleuma» nacionalista contra os sonhos imperiais de um Napoleão continental e francês.

 

Fazer uma referência ao fim-de-semana completo para descanso, à «fleuma», à pausa das cinco para uma xícara de água quente com um farrapinho… poderiam ser sugestões suficientes para a invocação do nome de um povo, de uma cultura, porque verdadeiras ou folclóricas, elas são referências possíveis, mas turbas, como o é essa infusão de ervas com um farrapinho de natas.

Cultivado nos orientes, difundido pelos sete mares do comércio, bebido sob o «smog (por influencia de uma princesa portuguesa), o chá-infusão serve-se no bule?

Os povos têm nomes, tal como as pessoas na sua indidualização e Joões existem por todas as partes, mesmo disfarçados de Johns, assim como há bules, porque chá bebe-se em todo e qualquer sítio. Porém, John Bull só existe um, transformado em símbolo caricatural de um povo insular, famoso nos tempos passados pela sua educação espartana e um tanto puritana, que com a suas etiquetas de «gentleman» e conversa «snob» tem pirateado os cinco mares, tem conquistado continentes à espadeirada, como exorcismo ao sufoco insular do seu mundo privado.

Os símbolos nacionais não nascem como cogumelos, criam-se por necessidades patrióticas, e se o Zé-Povinho nasceu como desprezo caricatural por um povo amorfo e sem brio, o John Bull nasceu como orgulho taurino, como «fleuma» nacionalista contra os sonhos imperiais de um Napoleão continental e francês. Surgiu como «sense of humor» contra o «esprit».

Esse orgulho de raça, desenhado primeiro como um boi aliado á Britânia, passou posteriormente a ser representado como uma bojuda personagem, bem alimentado pelas colonias que foi invadindo e conquistando aos outros, de faces rubras pelo sangue derramado pelos Drakes, e que na sua soberba de império foi conquistando inimigos.

Portugal e a Inglaterra, diz a História e os documentos, têm a mais velha aliança do mundo entre nações, contudo várias vezes essa aliança foi «traída» pelos segundos, e o John Bull considerado como um dos piores inimigos da nossa soberania e nacionalidade, nomeadamente pelo zé-povinho, mais atreito a estes sentimentos ressentidos.

Se raramente o John Bull surge na nossa caricatura como um aliado amigo, na segunda metade do século passado era esta a sua imagem:

«No seu aprumo de pessoa fina / o John espanta uma cidade inteira / e anda a cahior de bêbado, se apanha / de vinho bom, sortida garrafeira.

E d’ouro tendo os cofres atulhados / pois que do céu parece que lhe cai / para roubar-lhe a caixa do relógio / John é capaz d’assassinar o seu Pai.

Enfim! Enfim! É um vicioso e mau! Na city espalha o grito de terror / e o mundo aponta o nome seu, dizendo / - É John Bull, o Jack, estripador(Almeida e Silva in «Charivari» de 22 /2/1890).

Sentindo estripado no orgulho e na aliança, por mor de um Ultimatum, as simpatias não eram muitas nesse fim de século: «Cathicismo Anglo-Germânico: Obras de Misericórdia – Tirar a camisa a quem a tiver» (Nogueira, in «Pontos» de 16/7/1899); pondo, sempre que possível o Zé de sobreaviso: «A amabilidade Inglesa – O rapazinho Zé anda mal arranjado, trás uma gravata que é uma indecência. John Bull, caridoso, dá-lhe uma nova e leva a sua amabilidade até ao ponto de lha pôr ao pescoço. Mas quando lhe der o nó hão-de ver como ele aperta com força (esganando-o)» (Manuel Gustavo Bordallo Pinheiro in «António Maria» de 9/7/1892); ou «Caricias de John Bull – Eis como a Inglaterra nos abraça e nos beija, levando-nos a carne, a bolsa, e o fato. Abraços de tigre, beijos de Judas. Bandidos!...» (A.Silva in «Charivari» de 25/1/1890).

Deu-se pois, nesses tempos, o confronto entre o Zé despeitado, e um John Soberbo, mas pleno de «humour» superior, e mesmo difamado, insultado, querelado, nunca deixou de se instalar com os seus negócios indústrias e cultura onde mais lhe aprouvesse. Nada bule com o John Bull, devido ao seu lado «desportivo». Inventor do futebol, desporto-rei da actualidade, e de outros desportos não menos monárquicos, podemos descortinar melhor o seu espirito, através desses mesmos: uma multidão atrás de uma pequena coisa /objectivo vitorioso, num jogo de regras, fáceis de ludibriar, se tiver arte para isso.

Os tempos passaram, as querelas esqueceram-se, as colónias perderam-se, as alianças reinstalam-se, e se hoje já não há tanta «fleuma» nem «smog», o chá continua a ser campeão de costumes, e o John Bull, um tano antiquado permanece na sua função orgulhosa de símbolo desse povo inglês.


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