Wednesday, January 13, 2021

Caricaturas Crónicas: «Júlio de Sousa: a máscara caricatural» por Osvaldo Macedo de Sousa in Diário de Notícias de 6/3/1988

Ele pertenceu àquela raça de stuarts que viveram Lisboa de uma forma apaixonada e castiça, numa cidade soterrada por um falso cosmopolitismo.

 

«Ele usava uma máscara – máscara pesada que o sufocava por vezes, máscara moldada por ele. Talvez para se defender, para atacar, para encobrir ou descobrir algo, não sei. Mas, por detrás dessa máscara, dessa silhueta estranha, patética, um tanto romântica, havia uma alma que sorria bondosa e generosa. /…/ Ele amava as sombras românticas, os luares, as árvores descarnadas, os degraus que podiam descer ou subir, a Lisboa nocturna, o fado. Chamavam-lhe o Chopin do Fado» (Miguel Ângelo in Diário Popular de 19/8/1966).

Estas são palavras de despedida e de saudade por um artista que foi pintor, escultor, figurinista, cenarista, cenógrafo, poeta, compositor, caricaturista que foi Júlio de Sousa.

Natural de Lisboa, onde nasceu em Janeiro de 1907, Júlio de Sousa encarnará a imagem da cidade, vivida como um fado, em que ele foi mestre, como uma poesia que ele inscreveu no seu quotidiano boémio.

Dizem que não era uma figura simpática, que não era fácil gostar dele, pela sua forma de estar na vida, pela «máscara» que criou para si próprio na convivência com os outros, na teatralidade da tragédia ou comédia que é a vida.

O teatro foi uma sua vivência, e por vezes a sua profissão, ao trabalhar como figurinista para diversos teatros, como cenarista no Teatro Experimental do Salitre, como cenógrafo de ballet para o Circulo de Iniciação Coreográfica de Margarida de Abreu.

Por detrás dessa máscara teatral, havia a poesia (reunida nos livros «Jogo Perdido» e «Saudade Vai-te Embora…») que o inspirou nos múltiplos fados que compôs, entre os quais se salienta «Saudade… vai-te embora», talvez a mais célebre das suas composições; havia a ironia que o fez humorista e caricaturista em múltiplos periódicos.

Júlio de Sousa fez o curso da Escola de Belas Artes de Lisboa, iniciando cedo a sua colaboração como ilustrador nas revistas «Civilização», «Magazine Bertrand», «ABC», «Modas e Bordados», «Acção», «Diário Popular»… Neste último periódico integrou desde logo a equipa que o fundou, ilustrando a secção teatral.

A caricatura, o humor, extravasaram-se tanto no lápis, como no barro, ou nos trapos que se faziam bonecas. Pelo desenho, a sua expressão caricatural é o traço síntese, quase abstracção, em que um simples pictograma engloba em si toda a personalidade e traços figurativos do indivíduo.

Na ilustração existe um entrechocar de tendências, um cruzamento entre o romantismo e o grotesco, que na pintura resulta uma simbologia e iconografia 1900, um amar o «mundo boémio do cancan». Esse grotesco romântico é levado à sua expressão mais caricatural nas suas bonecas de trapos, uma expressão escultórica, poética-patética e humorística da visão do mundo.

Júlio de sousa é, pois um mestre da sugestão, da insinuação humorística, romântica, grotesca ou saudosista de um mundo real, em que ele próprio é grotesco ou poético. É um transformista da matéria plástica pela ironia, pela poesia com que decorou a sua máscara, a sua vida de lisboeta, boémio, noctívago, original.

Ele pertenceu àquela raça de Stuarts que viveram Lisboa de uma forma apaixonada, e castiça, numa cidade soterrada por um falso cosmopolitismo. E nesse mundo romântico que criou à sua volta, morreu a 1 de Agosto de 1966.


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