Saturday, January 16, 2021

Caricaturas Crónicas: «José Vilhena – o humor português» por Osvaldo Macedo de Sousa in Diário de Noticias de 8/5/1988

Foi sempre uma voz inconformada e quando os outros se calavam ele intervinha, o que é de louvar, goste-se ou não do seu estilo. E não esqueceu o eterno Zé, aquele que anda cá por baixo, feito pequena burguesia urbana e rural.

 

Fala-se frequentemente de géneros de humor como elemento caracteristico de cada povo. Refere-se ao humor de espírito, à ironia… porém para o povo português a piada que melhor faz despoletar o riso, é a de cunho brejeiro, macabro, humilhantes por vezes, ou então as eternas anedotas simples, do babado, da sogra, dos cornos… as tais que são apenas doze e que já vem na Bíblia, não passando portante de eternas variações.

O humor português ainda está enterrado no espírito da taberna, local de convívio e diversão do pobre Zé. De todos os caricaturistas e humoristas nacionais, que por cá trabalham no riso, qual herdeiro de Stuart Carvalhais, José Vilhena é sem dúvida o mais português deles todos, porque não procura um novo humor, antes dá generosamente aquele que já existe no espírito pronto a servir.

Continuador da nossa sátira medieval (de baixo ventre), ele é um cronista marginal da nossa sociedade pornográfica, um escritor / desenhador na contracultura da moral puritana e do Poder. Por tudo isto, sempre foi um autor maldito, com a censura, a Polícia e os livreiros contra ele.

Nos últimos quinze anos do Estado Novo ele foi uma voz viva da oposição feita riso, numa política de sátira desestabilizadora, em que eram visados os mitos e as figuras do regime. As formas femininas, o erotismo ao mesmo tempo que eram uma ofensa à moral do regime, eram também a arma que melhor captava o público, e dessa forma foi dos poucos autores humorísticos que vivia bem, e folgadamente, do que escrevia e desenhava. Conciliando o desejo à vontade, o erotismo à critica dos costumes nasce a força paródica de José Vilhena.

O seu humorismo tem duas vertentes, a escrita e a desenhada. A literária é talvez a mais desenvolvida, que se expressa em mais de setenta livros publicados, enquanto a gráfica é a mais conhecida, pela sua identificação imediata.

Neste primeiro campo, ele é um autor da dita literatura de cordel (brejeira), de sátira directa (paródica), assim como de venda, já que a sua estrutura editorial não passa pelos normais intermediários de livrarias, antes vai logo para a rua, nos quiosques, à vista de todo o transeunte, ou vendido à socapa misturada com outra imprensa, segundo os tempos e proibições da censura. A sua vivência, como obra escondida, está não só ligada à perseguição pidesca do antigo regime aos seus livros, que tentava apreender imediatamente as edições, como também à própria vergonha hipócrita do leitor burguês, que se esconde do juízo à imoralidade da sua leitura. Milhares de pessoas o liam (chegou a fazer tiragem de cerca de sete dezenas de milhares), e pouco assumiam que o liam.

Nos seus livros, e depois nas revistas também desenvolveu a fotomontagem, ou a foto-romance para fazer humor. O desenho, como ilustrador de todas as suas publicações, provem da escola portuguesa do naturalismo raphaelista, adoçado pelo gosto dos anos 60, um novo barroquismo das redondezas femininas.

É um desenho de traço clássico e directo, en que a caricatura não procura subterfúgios de estilo. É, tal como a sua comicidade, uma ilustração agressiva, satírica, de gosto popular, muita das vezes raiando a fronteira da insolência total. Nessa via, ele foi europeu antes de todos os outros portugueses, desenvolvendo o sistema do ecu, em eculogia, uma ciência de que é especialista.

As suas vitimas preferidas são os homens do poder, e quando lhes de dar feições os políticos, também eles insolentes na sua actuação governamental, são os fura-vidas, os patos-bravos, os novo-ricos, ou seja o poder do desenrasca que domina a sociedade nacional. Por outro lado há o eterno Zé, aquele que anda cá por baixo, feito pequena burguesia urbana e rural, entalado entre a moral pregada na educação, e a vida imposta por aqueles políticos, por aquele poder.

José Vilhena foi sempre uma voz inconformada, e quando os outros se calavam ele intervinha, o que é de louvar, goste-se ou não do seu estilo. Ainda hoje, quando se registava um facto inédito da vida portuguesa destes dois últimos séculos – o não haver nenhuma publicação humorística nas bancas, ele teve que voltar à ribalta, com o «Fala Barato». É que «o grave para nós, portugueses, não é estarmos metidos todos no mesmo barco; é o barco ter encalhado».


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