Sunday, January 17, 2021
Caricaturas Crónicas: «FERNANDO PESSOA CARICATURAL» por Osvaldo Macedo de Sousa in Diário de Noticias de 12/6/1988
Há
fisionomias mais caricaturáveis do que outras, seja por integrarem elementos
anatómicos preponderantes ou ausentes, seja por se rodearem de uma iconografia
tipificada, mesmo que vulgarizada em outros indivíduos. Este é o caso de
Fernando Pessoa, um poeta ilustre, mas vulgar de feições.
Porém,
se as suas obras literárias ficaram para a eternidade, o mesmo aconteceu a uma
imagem sua, que em caricatura síntese se reduz a um triângulo capilar facial,
igual a muitos outros bigodes; uns óculos que muita gente usa, principalmente
os que vêem mal; um chapéu preto que se encontra em qualquer chapelaria, para
protecção contra o Sol e outras intempéries. Dos olhos, boca, nariz, cabelo...
nada reza a história. Talvez o queixo ainda se salve.
É na
base dessa iconografia que se têm realizado múltiplos retratos, caricaturais ou
não, que agora proliferam na busca do poeta perdido.
No
caso de Fernando Pessoa, artista, a questão caricatural agudiza-se, porque ele
é muitos e um só Pessoa. É na multiplicidade de seres que ele é, dividindo-se
por Caeiro, Reis, Campos, Soares... criadores que existiam dentro dele; mas dos
quais não há retratos, para além de uma descrição literária feita pelo Campos.
Após a morte e desaparecimento daqueles, e na base desse texto, Almada
Negreiros deixaria a sua interpretação plástica dos três primeiros.
Portanto,
foi só o Pessoa que se manteve como fonte fisionómica para a criatividade
caricatural, que durante a sua vida não foi muita. Dos caricaturistas que o
conheceram, apenas quatro o transpuseram para o papel. Foram o Stuart
Carvalhais, Bernardo Marques, Almada Negreiros e Teixeira Cabral. Stuart num
breve retrato/ilustração para um artigo literário; Bernardo Marques em dois
desenhos alegórico/satíricos; Almada em múltiplos desenhos e telas; Teixeira
Cabral numa genial caricatura síntese.
Pela
sua importância no meio artístico, pode-se considerar que ele não teve a
repercussão caricatural que merecia. Só que este elemento não é de estranhar,
quando se sabe que só muito recentemente se tem vindo a descobrir a verdadeira
dimensão da obra e a sua importância. Essa descoberta tem sido tão intensa que,
por vezes, lhe é prejudicial na popularidade.
Por
outro lado, e apesar dele ter sido amigo e companheiro de tertúlia de muitos
dos caricaturistas que dominavam os periódicos desses tempos, que impuseram o
modernismo em Portugal, ele não era um amante da caricatura. Pessoa, por
questão estética, ou política, não soube reconhecer a importância do humor no
âmbito da irreverência que os do Orpheu reivindicavam no âmbito estético; não
soube reconhecer a importância estética e sociológica na difusão de conceitos e
ideias modernistas. Ele defendia a concepção filosófica de Baudelaire, em que o
humor provém do lado diabólico do homem, que é o triunfo da futilidade.
Esquece-se que por vezes a futilidade é mais incómoda que a monotonia, a
passividade quotidiana.
Posteriormente,
seria o mestre João Abel Manta a fazer uma caricatura de interpretação
filosófica. Vasco, no princípio desta década (de 80), viveria um período
dominado pelo Pessoa, organizando diversas exposições com caricaturas,
desenhos, pinturas suas, assim como a publicação de serigrafia e livro
biográfico. Nesses anos foi o artista que melhor difundiu a personagem de
Pessoa, o que não impede de ser ignorado pelas instituições do Poder, quando
expõem os artistas que pintaram Pessoa.
Agora,
com a aproximação do centenário (que entretanto já passou), com a transformação
do artista em noticiário, em actualidade de eventos, poucos são os artistas que
ainda não foram obrigados a retratá-lo/caricaturá-lo. Assim se poderão
encontrar obras de António, Maia, Pedro Palma, Relvas, Zíngaro, Cid, Rui, Artur...
Os
centenários, na actualidade, são uma moda, um retrato caricatural de como o
povo português vive a cultura, ou seja, celebra a morte, quando os artistas já
não podem ser incómodos para o poder.