Wednesday, January 27, 2021
Caricaturas Crónicas: «Caricatura de Livro de Curso: tradição coimbrã» por Osvaldo Macedo de Sousa in Diário de Notícias de 23/4/1989
O estudante
de Coimbra sempre foi um pouco um símbolo da irreverência. Não admira, assim,
que tenha havido sempre uma tradição muito particular pela caricatura na cidade
do Mondego.
Coimbra, a cidade-universidade, berço de doutores,
intelectuais de boémios «eruditos», é também centro de grotescas caricaturas
(que por vezes nos governam), não fosse o estudante símbolo de irreverência.
Já nestas crónicas falei de Correia Dias, Luís Filipe,
Christiano Cruz, alunos de Coimbra, que por aí desenvolveram a arte da
caricatura, de Tossan, Tom, que encheram vários livros de curso com a sua arte
de charge…
É curioso que os senhores doutores, antes de iniciarem
a sua vida «séria», tenham como tradição levar como última recordação um traço
feito de riso e irreverência. Será um gesto de despedida à verdade crua, para
entrar na selva dramática do mundo adulto?
Ora numa recente viagem à Lousã, perto de Coimbra,
tive a oportunidade de conversar com o meu amigo Zé Oliveira, também humorista
(a exercer actividade do «Trevim»), sobre alguns caricaturistas que têm deixado
o seu trabalho em Coimbra. Heis os dados que o Zé Oliveira me forneceu sobre
dois desses artistas:
SIDÓNIO – «Algarvio,
quase completamente surdo, apareceu um dia (década de 60…) POR Coimbra. Vivia
dos proventos que lhe possibilitavam as caricaturas para livros de fim de
curso. Ficou por lá, pelo menos alguns anos, dormindo e comendo, a favor, nas
«Repúblicas», a troco de «frescos», que desenhava a traço rápido.
Um dia,
desaparecido de Coimbra, “encontrei-o” numa revista, cujo nome não me recordo,
entrevistado na qualidade de… pintor. Afinal, conhecido por meia Coimbra como
um bom caricaturista, desconhecia-se-lhe estar ali um melhor de técnica
amadurecida, conforme se depreendia das fotografias dos seus quadros. Há 3 ou 4
anos, ou perto, próximo do Hotel Astória. Não lhe falei, porque… poderia ser
mesmo ele e… como é que se fala com um surdo de 90 anos?» (Zé Oliveira crê ter ouvido que Sidónio morreu há uns
meses).(1)
ÁLVARO DE MATOS, A. MATOS, MATOS – «Vivia
em Coimbra nas décadas de 50/60. Baixo, cabelo farto, grisalho, óculos de aros
grossos e negros, fazia bastante caricatura para livros de curso, assim como
pintura de murais para cafés e restaurantes, muitas vezes sob temática de
Coimbra. Esses murais tinham mais qualidade do que muita gente lhes atribuía.
Ainda existem alguns.
Trabalhava também um pouco em artes
gráficas e cerâmica, criando modelos escultóricos de bonecos de decoração
popular, reproduzidos em série. Expôs algumas vezes pintura, num estilo muito
clássico,
As suas caricaturas continham exagero
comedido, mas o seu traço era peculiar. Disse-me um dia que, em sua opinião,
uma expressão facial residia muito mais numa boca do que nos olhos. O que lhe
custava «apanhar» eram as expressões da boca.
Chegou a caricaturar cursos praticamente
inteiros da Escola do Magistério Primário de Coimbra e da Escola de Regentes
Agrícolas. Numa e noutra, tinha clientela habitual e mais regular do que na
Universidade.
Se ainda for vivo, será bastante velho.»
Foi um testemunho de Zé Oliveira sobre
dois dos vários artistas da caricatura que têm vivido Coimbra no rasgar à pena
as caras dos qu por ali passam a estudar.
PS: (1) SIDÓNIO: Notícia falsa, quando o viu não tinha 90 anos
mas cerca de sessentas, como sabemos hoje. José Sidónio de Almeida (Faro 10 de Julho de 1918 — 1997) foi um caricaturista, pintor e
escultor português e que só faleceria em 1997.