Wednesday, January 27, 2021
Caricaturas Crónicas: «Amarelhe – a caricatura de teatro» por Osvaldo Macedo de Sousa in Diário de Notícias de 9/10/1988
Não podendo afugentar a freguesia, ele
consegue o compromisso entre a sua visão caricatural e o amor-próprio dos
caricaturados. Os desenhos revelam a perspicácia especial do artista que, sem
deformar em demasiado, logra, com a verdade e síntese, definir as
particularidades dos retratados.
Olhando para a história da cultura em Portugal somos obrigados a reconhecer que, por um lapso, sempre fomos para o inculto, vivendo as artes no espelho da saloiice estupidificante dos nossos políticos governantes; por outro lado verificamos que a sociedade a vive por modas.
Por exemplo, hoje a moda é a pintura, como um expoente da bolsa de valores (com a serigrafia como sucedâneo económico para os mais pobres), enquanto o teatro é a luta quixotesca pela sobrevivência de uma dúzia de companhias, Nas primeiras décadas deste século, a moda era precisamente a inversa, vivendo os pintores a imagem romântica dos pierrots incompreendidos, e os actores o estrelato da sociedade divertida.
O humor e a caricatura também estavam na moda, e naturalmente os humoristas abordavam tudo o que tinha interesse para a sociedade, desde a política à sociedade, à cultura, ao teatro. Havia mesmo alguns que se especializaram num campo só, sendo o caso de Amarelhe, o primeiro a impor-se como o caricaturista do mundo do teatro.
Américo da
Silva Amarelhe nasceu no Porto a 26/12/1894 (filho de pai galego Amarelle), e
desde muito jovem se dedicou à caricatura, desenhando a sociedade numa visão
pitoresca e humorística. O seu traço pertence à escola rafaelista, só que mais
aligeirado do barroquismo, apresentando-se mais linear, com alguns compromissos
com o humorismo decorativo (campo que ele adoraria explorar mais, mas...). Tal
como Mário Azenha escreveu, ele «não é um
caricaturista de síntese, de transcendente humorismo e penetração à maneira
inglesa; ou imaginoso e pícaro no tipo espanhol. /…/ O influxo das técnicas
modernas não o levam a renunciar aos cânones clássicos. /…/ Os traços, mesmo no
exagero, são proporcionados e mantêm nítidos os caracteres do módulo e o
contorno da figura».
Este é um estilo gráfico, e uma opção humorística, como fuga a uma irreverencia modernista tentadora (estilo ousado onde acabou por concretizar meia dúzia de telas magistrais), que poderia existir, mas que tinha de ser amordaçada por sobrevivência: «É que eu não posso desenhá-los ao sabor da minha visão e sensibilidade, senão perco a freguesia».
Amarelhe é um profissional do desenho, que trabalha incansavelmente noite e dia para poder sobreviver, porque como já referi várias vezes, a caricatura sempre foi mal paga. Não podendo afugentar a freguesia, ele consegue o compromisso entre a sua visão caricatural e o amor-próprio dos caricaturados, e como afirma Julieta Ferrão, «os desenhos de Amarelhe – grafia pitoresca e humorística – revelam logo ao primeiro golpe de vista, a perspicácia especial do artista que, sem deformar, conseguia com verdade e síntese, definir e figurar as particularidades dos retratados».
Tendo
iniciado a carreira no Porto mudando-se depois para Lisboa, vivendo uma vida de
boémia e de ironia sobre todos os campos da vida, com os anos, as desilusões,
inconformismos… foi-se encerrando num isolamento de cepticismo, concentrando a
sua visão caricatural nos retratos encomendados pelos periódicos, pelas
companhias teatrais (cartazes promocionais) ou pelos próprios interessados. A
sua atenção que sempre tinha privilegiado o teatro (com cuja obra fez várias
exposições), foi-se fechando naquele mundo, deixando para a posteridade muitas
dezenas de caricaturas de actores, que reunidas poderiam ser encaradas como o
grande «álbum das glórias do teatro português», da primeira metade deste
século. São caricaturas, cartazes, capas de partituras… «numa técnica originalíssima de requintada beleza – diz o crítico
Artur Portela – e de um alto pensamento
decorativo. O traço afinou-se em sensibilidade. A cor obedece ao ritmo das
imagens».
Amarelhe morre de ataque cardíaco em 1946, mas ele mantem-se como um símbolo da caricatura, o triunfo do teatro como glória dos seus intérpretes, os intérpretes teatrais como glória de um artista.
Ele criou uma tradição de caricatura teatral que se manteria pelo menos mais meio século de actividade com Manuel Santana, Fred Sant’Ana, Pacheco, Júlio de Sousa, Fernando Bento, Jorge Rosa…