Wednesday, December 30, 2020

Um livro por semana – “Da cegueira dos pintores” de Júlio Pomar» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 16/11/1986)

 «Um pintor que se dirige ao público, não para lhe apresentar as suas obras, mas para lhe revelar algumas das suas ideias sobre a arte de pintar, expõe-se a numerosos perigos» (Matisse)

 

Mais um livro da colecção «Arte e artistas», em que o pintor Júlio Pomar se apresenta no «comércio das palavras: recorro a ele aqui para desbravar a selva do ver, para me aproximar do lado perturbado da visão; para desempenhar, portanto, a função da bengala do cego; protegendo a marcha do indivíduo, ajudo-o a afastar-se dos obstáculos em que poderia tropeçar».

Não é fácil o autor falar da sua própria pintura, mesmo olhando-a «com olhos frios», como um «intruso», já que segundo o pintor-escritor «a pintura começa onde já não se pode falar dela, onde as palavras fracassam e vogam à deriva».

Este livro não é a resposta à pergunta nunca feita («E que pensa você de si mesmo?»), mas uma deambulação, ou preferencialmente «uma ruminação no vazio» que é a decomposição das imagens pela palavra. A palavra é a sedução do desejo, o desejo dos objectos pictóricos, o «ser» ou «dizer», é um quadro «atravessado por chegadas sucessivas de notações e de acontecimentos», é o assunto encontrado «ao acaso dos dias», é um «jogo» entre as imagens presas ao «não lugar» pictural, o universo pintura que o artista tenta construir, e o quotidiano onde se recortam as imagens.

Partindo da sua obra, a «imagem deu origem a outras imagens» em «sucessivos encaixes ou desencaixes», até atingir as raízes da arte contemporânea. Passando por Bacon, para dissecar Matisse e Cezanne, o pintor-escritor escapa do vazio da palavra-discurso, para analisar «o diálogo entre o que o pintor quer e o que o pintor faz».

Neste itinerário literário, o artista expôs-se a numerosos perigos, mas, tal como um «herói de ficção», escapou ao perigo da autocontemplação, ou ao deserto da análise-vazio-estético. E tudo termina bem quando reconhece «a paixão do pintor: quotidiana partida do mundo (partida no sentido de pregar partidas?). Rito solitário, festa mistério, calvário, droga, bebedeira. Merda para os pintores aplicados (eu incluído)»

«Da Cegueira dos Pintores» de Júlio Pomar (Colecção «Arte e Letras») Lisboa 1986.


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