Tuesday, December 08, 2020
«Stuart Carvalhais 25 anos depois - Quando os “bonecos” são arte» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 2/3/1986)
Festejara morte de alguém é um contra-senso em humor
negro, mas, quando se refere a um artista, é finalmente a consagração da obra
que, na maior parte das vezes, não foi reconhecida devidamente na sua época.
Celebrar o aniversário da morte do Stuart é recordá-lo, é criar um pouco mais
de mito à volta de uma obra, esquecendo as amarguras mais interiores do homem,
supervalorizando os romantismos do artista.
Passaram-se vinte e cinco anos desde a morte deste
artista, ainda hoje incomodo em certos meios intelectuais ligados às
belas-artes. A caricatura e a ilustração humorística, como artes efémeras,
artes de mass-media e gosto popular,
arte de irreverência, nem sempre são consideradas no seu valor verdadeiro. A
divisão nas artes entre expressões maiores ou menores é um grave defeito de
snobismo artístico, fomentado por psicoses de artistas pouco seguros do seu
valor estético. Na verdade, o que existe é artistas maiores e outros menores.
Na caricatura e ilustração humorística, artistas tem
havido que, se dedicando apenas a estas artes, forçaram as portas da história
das belas-artes, e impuseram-se acima de qualquer suspeita estética. Este foi o
caso, em Portugal, de Raphael Bordallo Pinheiro, Celso Hermínio, Leal da
Câmara, Christiano Cruz, Correia Dias, Teixeira Cabral… Stuart Carvalhais.
Outros, ao dedicarem-se também a «artes maiores», salvaram-se da «perdição».
Stuart, sendo um artista irreverente em artes
irreverentes, não foi um «perdido» nas artes, mas perdeu-se na vida, no tintol
boémio, nas pernas das vielas e calçadas, no quotidiano profissional dos
jornais. Diz-se mesmo que o seu génio foi chupado pelas máquinas impressoras, e
que ele é dos mais fecundos artistas de todo o mundo, sendo poucos os que
trabalharam tantos anos para a imprensa, como ele. Foram 54 anos.
Os jornais dominaram a sua obra, a sobrevivência do
artista era o profissionalismo gráfico na tradução imediata das necessidades,
era o aproveitamento irrefelctido das oportunidades. Desta forma, ele soube
sobreviver também na ilustração de capas de revistas, de contos e narrativas,
de capas de música, cartazes, cenografias de teatro, decorações… Fez
obras-primas, fez obras prementes que o tempo não deu espaço à qualidade
apurada.
Quem é o Stuart Carvalhais? Ele apareceu quando uma
geração quis acordar Portugal da sonolência secular, para uns através da
tentativa de revolução ideológica, a que baptizaram de republicana, para outros
por manifestações estéticas, que baptizaram primeiramente de humoristas, e
depois rectificaram para modernistas.
Portugal tentava entrar no século XX, entrar na Europa
pelo sorriso. Muitos foram os que procuraram a europa portuguesa no
além-fronteiras, viram o mundo, e regressaram convictos de que tinham
apreendido a arte do europeu. Outros, ficaram por cá, tentando traduzir o que
pairava no ar.
Stuart foi um modernista, porque foi a Paris, e aí
triunfou. Foi um modernista, porque esteve presente em todas as manifestações
do grupo. Só que nunca foi um vanguardista, e caricaturou quem tinha pretensões
de o ser. Ele foi, basicamente, um «nacionalista», no conceito de Christiano
Cruz, ou seja, estudou as estéticas vanguardistas do estrangeiro, fez tabua
rasa do que sabia, e exprimiu a sua alma estética.
Enquanto os seus companheiros ensaiavam expressões
aprendidas, mas não sentidas, ele foi a sua própria expressão. Enquanto os outros
descobrem a aparência pela linha síntese mundana, ele transforma a linha na
aparência profunda da realidade.
O dia-a-dia está, como verdade sem máscara, nos seus
desenhos humorísticos, na vida que ele vivia, queixas que ele ouvia, cenas a
que ele assistia. A sua obra é testemunho da sua experiência, que ele
exorcizava pelo riso, seja de gosto doce ou amargo.
A vida, para ele, não é sombria, quando existe pode
existir um sorriso no canto da boca, ou quando alguém nos faz vê-la por um
prisma de humor. Foi o que ele tentou, senão por convicção, por forma de
sobrevivência. O humor era o parceiro natural do seu trabalho jornalístico, e
como tal, o seu ganha-pão - «há dezoito
anos que almoço desenhos, que janto desenhos, que visto desenhos….»
O humor ajuda a vida, principalmente quando dá que comer
e pagar as despesas da casa, mas nem sempre o espirito irónico, ou satírico,
consegue abafar o sentido da ternura humana que o rodeia: o mundo, a miséria, a
dor, que por vezes parece patética na representação plástica, tiveram neste
artista o estilete mais ácido e mais belo de toda a arte portuguesa. Ele aqui
não é um observador, mas alguém que vive nesse mundo, não só pelo convívio com
a miséria, os mendigos, o povo que luta dia a dia, mas também pela alma
atormentada que vive dentro dele como grito contra a miséria. Stuart foi como
que um grito dos pobres, dos desprotegidos. O seu “pau de fósforo”, foi como
que o lápis de um abaixo-assinado, o mensageiro do mundo, nas casas daquela
burguesia fechada no seu bem-estar, e tão ironizada por ele.
Por isso mesmo, é no retratar este submundo, que as
suas obras são mais geniais, que o seu traço se esmera, que o seu espírito se
agudiza e penetra bem fundo na alma das gentes.
As figuras da «Sombra da Noite» são impares. Aqui se
pode ler a dor, a solidão, a amargura e a exploração, mas também o amor e o
prazer. As prostitutas, as mulheres da vida, do prazer-encontro - «Chamam-nos perdidas, mas é connosco que ele
se encontram…» - são rostos de toda uma sociedade em desencontro.
Stuart passou a vida fazendo caricaturas, inventando
humor, fabricando o dia-a-dia, como profissional de um jornalismo gráfico, só
que no fundo, o seu maior desejo, como o de todos os artistas, era estar livre
de obrigatoriedades quotidianas, era dedicar-se à sua arte - «Oh! Da minha arte! Vocês sabem lá o que eu
sonho às vezes – o que eu quisera realizar! Mas não posso! A vida não deixa!
Sou um profissional! Não passo d’um fabricante de desenhos…»
Os desenhos foram, afinal, a sua obra, apesar de ter
sido um dos fundamentais pioneiros da banda desenhada em Portugal; de se ter
dedicado à ilustração para crianças; se ter dedicado à aguarela e pastel sobre
a cidade de Lisboa quando havia tempo e dinheiro para os materiais; apesar de
se ter dedicado a múltiplos géneros de criação artística com diferentes
materiais. Afinal é no desenho que a sua obra possível de génio se exprimiu
melhor.
Os estilos que se conjugam em Stuart são múltiplos e
tão variados quanto os fins visados. Porém, ao tentarmos encontrar uma
constante na sua obra, deparamos com as linhas, com o gesto único stuartiano
que corria na sua espontaneidade. A colaborar neste traço, muito seu, havia o
célebre «pau de fósforo», que ele preparava com os dentes ou com um navalha, e
que deram às obras dois géneros diferentes de obras, pois diferentes foram
também os materiais utilizados, e que definem o «verdadeiro» estilo stuartiano.
Géneros que não são definidos por temáticas particulares, mas sim por um
utensilio específico – o primeiro é o desenho a tinta-da-china, o segundo é o
desenho a tinta de… café, graxa, remédios, cinza de cigarro, carvão… materiais
que ele apanhava à mão, criando as obras mais belas do seu traço inconfundível.
Ele não cultivou a arte em investigações estéticas de
atelier, ou deambulações ideológicas de tertúlias intelectuais, ele foi apenas
um artista que se exprimia de uma forma a que chamam arte: «A arte, na minha opinião, é uma mulher como
as outras. Quem pode gabar-se de perceber alguma coisa de mulheres? Cá por
mim…»
Quem era o Stuart?
«A sua cabeleira revolta -
descreve-o Joaquim Manso – carregada de
feitiços, agitada como a rama de um pinheiro, devia ser o Sinai da sua glória,
a auréola que as musas lhe beijariam, nas horas divinas de inspiração. Stuart,
porém, deixa-a andar à solta, em busca de um ponto cardeal, que ele descobre –
visionário! – quando está de lápis em punho, mas nunca com o auxílio de um
pente.
/…/ Stuart em
certas manhãs de desalento, aparece apagado, murcho, desarticulado, decapitado
– nas solas dos sapatos, mil léguas do Sara… É a sua maneira de assistir ao
funeral de uma sua ilusão.
Morre uma das
tuas quimeras – ó caminhante da amargura!
Resolve,
então, partir para o Rio de Janeiro, para Paris, para o Telhal, para a noite de
Walpurgis ou para o Taiti».
No dia 2 de Março de 1961, partiu como um traço que se
esfuma, como um pau de fósforo sem fogo, nem tinta que o alimente. Morreu um
homem, ficou uma obra.
Pode-se, como acabei de fazer, escrever muitas
palavras sobre a sua vida e existência, muitas especulações sobra a sua
mensagem, e todos sabemos que todas elas são falsas, pois não passam de
teorias. Mas, quando do arquivo bolorento se desenterram os desenhos, que os
fazemos reviver pelo desfrute do público, então sabemos que o Stuart Carvalhais
ainda não morreu, e que a sua arte, como humorista e artista, está acima de
qualquer suspeita.