Thursday, December 31, 2020

«Centenário do nascimento de Stuart Carvalhais – Desenhos e Ilustrações no “Diário de Notícias”» por Osvadlo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 8/3/1987)

 Estava-se nos finais do inverno quando Eduardo Coelho, sentado na sua tarimba de jornalista, foi interrompido de rompante, pelo aprendiz que entrava, gritando:

- Mestre, já sabe a última?

Como a curiosidade é o pecado de todo o jornalista, o director, sem sequer levantar a cabeça, tentando manter uma postura imperturbável, disfarçou esse sentimento, na pergunta indiferente:

- Qual é essa notícia tão perturbante?

- É que acabei de ter conhecimento do nascimento do Zé…

- Ora, esse já nasceu em 1875, do pai Bordallo, já cresceu, e os outros que por aí aparecem como novos, não são senão novas tentativas de lhe acender lanterna apagada da irreverência!

- Não falo desse saloio, mas sim no Herculano.

- Ignorante e idiota, o Herculano já desapareceu no Val de Lobos que nos rodeia.

- Mestre! Eu refiro-me ao José Herculano Stuart Carvalhais – retorquio, impaciente, o aprendiz.

Seja porque o Eduardo não ligou aos mexericos de um aprendiz de «meia-desfeita», seja porque não considerou importante o nome, o que na verdade foi uma grande falya de visão futura, o facto é que, naquele dia de 7 de Março de 1887, o “Diário de Notícias” não publicou a notícia desse nascimento, do que resultou, na evolução dos acontecimentos, uma grande confusão e especulação sobre os dados concretos do evento. Em último recurso, no desempatar das apostas, foi a velha arquivista do registo da Freguesia de São Pedro – Vila Real de Trás-os-Montes, que nos enviou a certidão registada e selada de tal data, confirmando da veracidade da notícia trazida pelo aprendiz alfacinha.

O “Diário de Notícias” era na altura, uma instituição noticiosa já de maioridade, ou seja, 23 anos de serviço sério e objectivo, sem interferências humorísticas. Naturalmente riu-se da ideia de publicar algo sobre um tal Stuart, esquecendo o ditado, nunca digas que desta água não beberás. Também é certo que a ironia das coisas, feitas sátira, só entrariam nas suas portas tipográficas, nos anos 90, pela pena do mestre Celso Hermínio, qual conquistador das letras hermínias da romanidade jornalística. Este jornal, um dos mais antigos ainda vivo, não poderia ter começado de melhor forma a carreira satírica, do que com aquele traço «expressionista», em terras de naturalistas românticos, quando o impressionismo ainda ofuscava a visão nas terras longínquas da Europa.

Quando o jovem José Herculano, no desenrolar das várias peripécias que é a vida, foi transferido por /com seus pais para Lisboa (1902), era o traço de Celso que, contemporâneo de um Bordallo envelhecido na “Paródia”, fazia rir-pensar nas segundas-feiras do “Diário de Notícias”. O desenho, a ilustração, o humor tinham conquistado já esse bastião noticioso, mas sem a força de outros titulares não menos seculares, que a ganância de uns e a apatia de outros deixariam desaparecer.

Foi precisamente nesse «Século» que o jovem José se transformaria no artista Stuart Carvalhais. Como tudo na vida, deste território, é pelas amizades e influencias que as coisas acontecem. Infelizmente ele não conhecia ninguém no «Diário de Notícias», enquanto o seu mestre (trabalhava ele como aprendiz de azulejaria) Jorge Colaço, dirigia o “Suplemento Humorístico d’O Século”, «O Cómico na luta-opinião política». Era o ano de 1906, quando esse novo evento aconteceu. Se «os sinos tocam, quando um anjo ganha as suas asas», nada acontece quando um artista nasce para as Artes e, por vezes, nem mesmo quando ele morre.

Tal como dois amantes platónicos, ambos se desconhecem na intimidade, mas observar-se-ão mutuamente à distância durante muito tempo. Stuart, para além de «O Século», intervinha em quase todos os periódicos da capital, naqueles que sobreviviam, nos que faliam, apoiando a República ou o regresso à Monarquia, o Sidónio Paes como o Affonso Costa…

O “Diário de Notícias”, após uma pausa irónica no final da Monarquia / princípio da República, recuperou a sua posição satírica com nomes sonantes como Francisco Valença, Manuel Gustavo Bordallo Pinheiro, Leal da Câmara, Jorge Barradas, Almada Negreiros, António Soares…

Teríamos de esperar pelos anos trinta do século XX, para se dar o encontro há muito desejado. É em 1935 que o novo evento acontece, e outra vez sem qualquer manifestação exterior de comemoração. Foi um simples surgir da manvha negra sobre o papel branco, o traço que dá origem ao «banco».

A ditadura dominava os espíritos, e os tempos não eram propícios à sátira política. Após o fervor da luta dos anos dez, do cansaço transformado numa certa apatia mundana, ou pseudocosmopolita, o humor ainda teve força para criticar o início da ditadura, o professor que tentava surgir como o salvador do país. Em 35, apesar da censura estar já incrementada a todos os níveis, como na imprensa, no humor houve ainda uma certa condescendência a alguns comentários. Mas, com o passar dos anos, e endurecimento das carótidas do regime, a sátira, o humor transformou-se em simples anedótas de salão, que mais parecia de tasca. O comentário, ou opinião sobre a política internacional ainda era aceite pelos censores, principalmente durante a Segunda Guerra Mundial, como fachada de liberalismo de pensamento. Por outro lado, a ironia na anedota social, a sátira entre linhas do comentário inocente, eram os caminhos possíveis de acusar o regime, a miséria do povo, a falta de liberdade, o estagnamento, do qual os tipos imutáveis da sociedade se tornavam heróis de um nacionalismo medievo.

Este foi o trajecto do Stuart no «Diário de Notícias», tal como dos outros humoristas. Comentar de tempos a tempos a política internacional; tentar de longe a longe passar uma anedota mais comprometida; jogar os sentidos duplos, e fundamentalmente criar a «piada do dia», a brincadeira da sogra, dos babados, dos náufragos… temas comuns a todo o humor de circunstância.

Os condicionalismos, em homens de génio, têm sempre como fruto de escape, uma alternativa, que no caso de Stuart, foi a exploração de um mundo muito querido para ele, o povo, seus hábitos, sua cidade. Ainda não havia exploração turística, ainda não havia o culto do pitoresco como cenografia, havia sim a petrificação de uma sociedade-povo, na tradição centenária que a civilização industrial não modificava, por a evolução ter sido proibida pelo regime. Stuart foi desta forma o desenhador-pintor, o humorista de uma Lisboa encantadora mas retrograda, pitoresca mas miserável.

A par do desenho de humor, Stuart foi ilustrador do “Diário de Notícias” para os romances em folhetins que publicava, as capas ou páginas referentes aos números de Carnaval, Páscoa, Santos Populares, Natal… A sua relação de colaborador do “Diário de Notícias” era igual à sua relação com os outros jornais, ou com a vida. Desprendido de contratos, ou compromissos castradores, cumpria os pedidos quando lhe apetecia, fazia os «bonecos» com o material que tinha à mão, ou seja tinta, café, graxa, remédios… com um pincel de dois pelos, um pau de fosforo, um lápis, um carvão….

Diz-se dele que foi um boémio genial, o desenhador das varinas e gatos, das pernas mais bonitas de mulheres, de Lisboa e seus becos, do humor simples quotidiano, mas no “Diário de Notícias” foi apenas um colaborador, genial, que para o jornal trabalhou durante algumas dezenas de anos, a par de Bernardo Marques, Albuquerque, Teixeira Cabral e, posteriormente, «substituído» por um Júlio Gil, João Abel Manta, António, Sam, Zé Manel, Pedro Palma, Vasco, José Bandeira…

Os colaboradores passam, a obra fica registada no papel pardo do jornal, o qual quando é de valor, ou especial, como é o caso, volta sempre a reaparecer na ribalta do jornalismo, ou das salas de exposição, feitas obras de arte, que na verdade sempre foram. Desta vez, o «Diário de Notícias» vai aliar-se ao Centenário do artista, expondo «Stuart no Diário de Notícias» na terra natal do artista (Vila Real),

Quando o Stuart morreu a 3 de março de 1961, o director do “Diário de Notícias”, mandou notificar esse infeliz evento, com saúde e tristeza.  


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