Thursday, December 31, 2020

Caricaturas Crónicas: «UM SORRISO PARA OS HOMENS DE BOA VONTADE» por Osvaldo Macedo de Sousa in Diário de Notícias de 1/1/1989

 A caridade é uma característica natalícia, momento em que certas pessoas fazem a limpeza de consciência, para um novo ano de competitividade. Leal da Câmara já dizia: «Saber rir é já alguma coisa, mas fazer rir aos outros é mais do que um talento. É quase uma caridade.» Só que nem sempre os deixam ser caridosos.

O Natal tem sido desde sempre um elemento de inspiração para cartoons, apresentando o Zé como o menino divino, à volta do qual rondam os políticos à procura do voto; apresentando os Zés como reis magros, a despirem os seus presentes perante o menino-governo.

O centro das atenções é sempre o menino-político, rodeado pelos aduladores e pela animalidade, ou seja, os burros e as vacas que proporcionam os tempos de fartura ou minguança. Passam os tempos e nada muda, havendo para todos os anos uma esperança, uma caridade, um amor a cumprir.

A magia deste dia é como um sorriso que destrói conflitos, que arruína amarguras. Por essa razão, mesmo em regiões de religiões diferentes se fazem tréguas de guerras, se come mais uma rabanada pelos meninos com fome no outro lado do mundo, se adiam ódios, se sentem remorsos momentâneos por injustiças.

O humor é como esse menino-esperança, pois estabelece o diálogo entre os homens, sendo um antídoto do ódio e do medo. Libertador dos «maus humores» do homem, descontrai o ambiente de desconfiança e angústia que banha o mundo (os políticos e oradores utilizam muitas vezes o humor para início de um diálogo).

É não só um «ambientador», mas também um «corrector». Quando nos rimos de alguém não só provocamos uma descontracção nos medos do nosso inconsciente, como «matamos» esse alguém, nem que seja por uns segundos. Nesse «assassínio» momentâneo criamos uma defesa contra os possíveis males que advêm do outro, sublimando-os em riso-amor. Ao mesmo tempo que podemos visionar as nossas potencialidades e fraquezas, tomamos consciência do que somos e de como nos podemos defender das agressões exteriores. Só quem se conhece bem é que se pode defender.

Nesta faceta «assassina» do humor, também existe o caso de nos encontrarmos como cadáveres momentâneos, transformando-se então o humor numa forma de podermos destruir as nossas fraquezas e inferioridades interiores. É como que uma auto-expurgação ou destruição dos pontos fracos por onde o nosso inimigo pode atacar. O humor pode ser um meio de defesa que castiga os defeitos e ameniza os caracteres.

Pode ser também utilizado como controlador do pensamento, ajudando a quebrar a rotina, os hábitos e as teorias enquistadas no comodismo, demonstrando como elas já não são realistas com o mundo, e deste modo apontando o caminho na evolução, pela irreverência. O humor tem o «dom» de nos fazer reflectir (ou pelo menos deveria ter) e esclarecer as contradições que existem no nosso pensamento, porque destrói as máscaras e desnuda as nossas fugas.

O humor não consiste na criação de um mundo totalmente original, mas numa nova maneira de ver, uma apresentação diferente daquilo que as pessoas olham, mas não vêem por simples alheamento do que é quotidiano e monótono, ou por fuga inconsciente. O humor obriga a despertar, a sentir o que se passa à volta - como dizia Freud, «o humor não resigna, desafia».

Desafio não os deseja o Governo, preferindo a passividade dos pais, com o sorriso de algumas crianças perante os presentes que o Pai Natal, apesar de tudo, consegue sempre dar.

Com um sorriso como lema haverá sempre boa vontade entre os homens, porque já diz o ditado: «Natal é onde e quando quisermos».


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