Sunday, December 13, 2020

Caricaturas Crónicas: «O Ultimatum caricatural» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 25/5/1986)

Quando a ditadura nos adormecia, nesses longínquos anos vinte, o Stuart Carvalhais tentou, infrutiferamente, ultimar a revolta num grito satírico: «Mortos de pé, que os vivos estão de cócoras!». Esse tem sido o trabalho,  improlífico, dos caricaturistas portugueses, tentar despertar o Zé Povinho para a realidade política.

Quando o país tentava despertar para o século XX, em irreverência estética, Almada Negreiros lançou um Ultimatum ao futuro: «Vós, ó portugueses da minha geração da minha geração que como eu não tendes culpa de serdes portugueses, INSULTAI O PERIGO».

Recuando no tempo, descobrimos que na nossa história diversos Ultimatuns tem sido lançados contudo de todos os nossos ultimatuns, o mais célebre pertence ao John Bull. Estávamos em 1890, quando em nome de uma velha aliança secular, no dedo, a rainha Vitória concedeu uma oportunidade ao Zé Povinho de ganhar um pouco de orgulho nacional, e algumas terras litorais em África, ao decrépito Portugal.

Dizia-se na altura que tínhamos terras para além-mar, mas poucos o sabiam: «Onde fica Chiloma (ocupada pelos ingleses) – Governo: Pois não sabemos onde fica o tal Chiloma!

Zé Povinho: Não sabeis, portugueses, ministros, legisladores! Chiloma dica aqui (no coração)… Quando a haste da bandeira inglesa foi cravada n’esse ponto do nosso território africano, senti no meu coração como que o entrar d’um punhal. Vós não sentis, mas Chiloma fica aqui!...» (Almeida e Silva, in «Charivari» de 22 /3/1890).

Perdeu-se então um sonho «cor-de-rosa», como o são todas as nossas saudades daquilo que, afinal, nunca tivemos. O dito «Ultimatum» tirou-nos tal sonho, mas deu-nos colónias (com maior ocupação de terreno), e assunto para as discussões:

«Rugia o País o seu indignado protesto /…/ no fundo da sonolenta indiferença nacional. O pendão das quinas, as glórias dos antepassados, algumas esquirolas dos ossos de Vasco da Gama e de Camões, e uma forte reserva de urros patrióticos, constituíam o menu servido na fluente discurseira dos oradores de toda a espécie que lembravam ao estonteado portuguesinho valente, que se descobrira o Brasil, se dobrara o Cabo Tormentoso e se fora, ali à India, como o bom burguês continuava a ir… à missa» (Cristiano de Carvalho, in «Revelações» 1932).

Assunto de tertúlia de café, ou átrio de igreja, o patriotismo combativo, levantou a voz (em «A Portugueza») contra o roubo, contra os que perturbam a sua apatia intrínseca: «- Aqui lhe trago, senhor juiz, este marujo bêbado, que anda pelas vielas do mundo, em nome da phylantropia, a praticar toda a casta d’infâmia, desde a invasão da propriedade alheia, até ao tráfico da escravatura. Há três séculos, que a título d’amizade, este malandro célebre me expolia de territórios que eu avassalei e descobri, e que ele procura, em armadilhas de Judas, concitar-me a demandas, onde calcula que eu possa vir a perder alguma parcela do muito que ainda se enfeuda no meu património» (Manuel Gustavo B.P. in «Pontos nos ii» 18/7/1889).

Clamava então contra o John Bull, clama contra os governos que o «ultimam» até aos ossos, e uma boa discussão é sempre importante na monotonia quotidiana, na defesa das palavras mais «vivas» do português, na distracção de outras preocupações mais directas. Cada um procura valorizar o que mais lhe convêm: « Zé Povo – Então, sr. Serpa, que resoluções toma a respeito da infame e traiçoeira ocupação do Chire pelosingleses?

Serpa – Nenhumas, meu caro Zé! Demais, bem sabes que outras coisas de maior vulto me preocupam nestemomento. Aquele caldeirão (de carneiro com batatas) que acolá vês precisa de ficar bem temperado. É d’ele que eu espero a salvação da pátria.

Zé Luciano – Olha, Zezinho, isso foi uma afronta inqualificável! Mas aqui tens o remédio, a desforra, vota n’esta lista nas próximas eleições, e depois nós cá estemos!...

Zé Povo – Compreendi-vos, políticos do meu país. Eleições, eleições, e a pátria, essa que se governe!... Oh! Um dia que não vem longe se ajustarão as contas, e ai! Dos culpados!» (Almeida e Silva, in «Charivari» 23/3/1890)

Só que o Zé é mau em matemática e desleixa-se nas contas. Entretanto, em nome de amizades em aliança, em nome da liberdade de não se sabe de quem, prosseguem os ultimatos pelo mundo fora. Em Portugal, hoje, felizmente que existem os ultimatos futebolísticos, para renascer de tempos a tempos o orgulho nacional.


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