Monday, December 07, 2020
Caricaturas Crónicas - «O QUE A CARNE VALE» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 9/2/1986)
«Foi o tumulto de Carnaval... gosto e apetite depravado,
intemperanças
de gula, enfim carne.»
Pe.
António Vieira in «Sermões»
Por
debaixo da máscara está a carne, matéria em putrefacção que o tempo vai
destruindo, até ficar em nada. Nada morre, tudo se transforma, e antes que
chegue o tempo da ressurreição ao terceiro dia, existem três dias «gordos» de
gula, antecedendo a marca da cinza: «Lembra-te homem que és pó, e em pó te
hás-de tornar.»
Por
debaixo da máscara da riqueza está o Zé e a Maria Povinho, matéria em
degradação que os impostos vão destruindo, até ficar no osso, que a carne está
cara. Nada morre, alguns viram a casaca, e antes que chegue o tempo da revolta
geral, o político faz eleições, renascendo, tal «phaenix», das cinzas
governamentais: «- Ó Zé não me conheces?» - pergunta a máscara política -
«Conheço-te como os meus dedos! És o mesmo do ano passado, mas com outra
caraça... No mais não fazes diferença: a mesma capa, o mesmo palavreado, e as
mesmas contribuições.» (R.B.P. in «Pontos nos ii» a 4/3/1886).
A
máscara é a arma do político, e com ela dá liberdade de fantasia ao
interlocutor, com ela metamorfoseia-se no que os outros gostariam de ver, finge
do que gostaria de parecer. A máscara é o Carnaval, é o «Xexé», é «Salsa», é a
política disfarçada em vida.
Tal
como o ciclo anual, quando a vida parece morrer, na falta de esperança, quando
os frios invernais crispam a máscara no gelo, chegam as campanhas eleitorais,
chega o Entrudo, a festa da carne. Já não há «carneiro com batatas», e a carne
no «churrasco» é outra: «Ora vejam vocês, rapazes como os tempos mudam!...
D'antes, quando havia fé e religião no mundo, era o Povo que queimava os
Judas... Hoje, são os Judas que queimam o Povo». (Nogueira, in «Os Pontos», a
2/4/1899).
A
Festa é a tradição do «apetite depravado», da «intemperança da gula», é a
barriga na procura do «cozido à portuguesa», o qual tem mais batata e couves
para uns do que para outros. Mas é também a liberdade em fingimento, é o cair
das máscaras da conveniência na qual nos vamos escondendo de nós próprios, como
ilusão de enganar os outros, e enganados andámos todos nós.
O
Carnaval, como valor de carne gorda, já que a carne limpa de vaca está muito
cara, é o mascarado que se desmascara a si próprio, sem necessidade do espelho
mágico do caricaturista.
Três
dias de Entrudo, dias de exorcismo, três «gordos dias» na tentativa de esquecer
a gordura da carne mais barata, ou a «ténia» na «porca da política». Se o
Entrudo é o triunfo da carne, porque não tem IVA, e a Quaresma o tempo da
abstinência, dos serviços prestados com IVA, o Portugal é a abstinência
perpétua para o Zé, e a carne eterna do político.
Dias
de folia personificados por um ser folgazão e glutão, capaz de todos os
excessos e tropelias, como triunfo libertador. O Carnaval e a sua orgia é a
irreverência contra a normalidade, é uma pequena explosão dentro de todo um ano
em que o Zé e a Maria são bisnagados, bailados... numa eterna mascarada. Pois,
quando crêem que finalmente podem retribuir os ovos podres, cai-lhes a
«Quaresma em cima! Pecados por a boca fora, (...) (neste espaço estava escrito
bacalhau) ...pela boca dentro, procissões, cera gasta, mirra, sermões, fatinho
preto... e está-se no céu!» (Almeida e Silva, in «Charivari», a <18/2/1888).