Thursday, December 17, 2020

Caricaturas Crónicas: «O FUNCIONÁRIO» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 21/9/1986)

Anúncio: «Nas repartições mais bem pagas do Estado precisa-se de empregados que queiram passar algumas horas d'aborrecimento em serviço da Nação. Fornece-se-lhes papel e tinta: contínuo às ordens; lume para aquecer os pés no Inverno e relógio adiantado. Férias para todo o mês de Setembro de cada ano, nos dias de gala e santificados. Entrada das 10 às 3 da tarde (podendo fechar a gaveta às duas). Os pretendentes apresentarão até uma arroba de cartas de empenho, e não precisa saber escrever. Pede-se que haja a maior concorrência a estes lugares, para bem da Nação» (Sebastião Sanhudo, in O Sorvete, 25/9/1881).

O funcionário, nomeadamente o público, porque o privado tem a sua privacidade mais em guarda, nunca foi bem encarado por aqueles que têm que suportar as bichas, que são cada vez mais; que têm que sofrer o reumatismo burocrático, sem remédio. O funcionário, por essas mesmas razões, não é apenas um trabalhador, mas um remédio, um supositório (de informações), um bode (sem sentido pejorativo) expiatório da raiva ao poder burocrático, seja do simpatizante ou opositor governamental.

O funcionário foi, ou é, uma criação laboral para diminuir os desafortunados, desprovidos de herança, de costas ao alto, o símbolo de um trabalho invejado por aqueles que o relógio de ponto é o nascer e pôr do Sol, daqueles que nasceram poetas das visões tangentes, solares.

Em Portugal, como na Europa, as profissões eram normalmente hereditárias, ou congénitas como doenças, e só com a dita revolução tecnológica/científica do século passado se conseguiu alterar essa sequência natural do saber, para se perder na vacina escolar.

Nesses tempos «nascia-se amanuense, governador civil, par do reino, deputado, ou director-geral, como se do ventre materno se trouxesse já, por uma fatalidade orgânica, o estigma desse destino funcional, semelhantemente ao que acontece com tantos e variados tipos anómalos que surgem à luz da existência na deformada série que vai do lábio leporino ao pé boto. Ser empregado público, não ir à repartição era o ideal de todo o portuguesinho valente, que sabia, pela influência dos seus progenitores cadastrados na regulamentada rotação da política dinástica, ter direito ao usufruto». (Cristiano de Carvalho, in Revelações, Lisboa, 1932.)

Hoje, a hereditariedade dinástica foi abolida, como se uma revolução pudesse alterar as conquistas, em sorna, de vários séculos, em portuguesismo. Entretanto, as profissões perderam grandemente a tradição familiar, conservando-se, contudo, a tradição dos melhores postos laborais para os familiares, ou amigos mais próximos.

A competência, num país de lebres e furões, não é relevante, porque, como garante o Respeitável Conselheiro (bem sentado sem fazer nada; enquanto os decretos, portarias, ofícios, reformas… esperam amontoados): «- Isto de heróis: só por antiguidade» (Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, in António Maria, 16/12/1897.)

Antiga é a passividade portuguesa, que em linguística se diz burocracia, como se burros fôssemos todos nós, e os crácios fossem imperadores, como o funcionário Pancrácio.

Fazer funcionar, em competência e rapidez, seria o trabalho missionário do funcionário, quando ele está vocacionado, em alturas que as vocações faltam, a não funcionar, na medida em que o não funcionário também não funciona, mas reclama. O funcionário é a burrocracia na luta heróica contra a estatística do desemprego, é o Estado «d’aborrecimento em serviço da Nação».


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