Tuesday, December 22, 2020
Caricaturas Crónicas: «Leal da Câmara, o panfletário» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 30/11/21986)
«/…/ Porque é
que o riso não seria o estado intermediário entre estes dois estados psíquicos
opostos, ou seja, a conjugação do prazer e da dor, produzindo este fenómeno
bizarro que é o humorismo que, pela alegria, faz aumentar a força vital e, pela
tristeza, produz a amargura que é a expressão da austera crítica, por vezes
mordaz e até panfletária!» (Manuscrito
da conferencia de L.C. em 1912)
E foi-o muitas vezes, na nossa história caricatural,
seja monárquica, como luta republicana, como saudade monárquica, seja como anti
ditadura. O panfletarismo é a expressão mais satírica e mordaz da crítica, e Leal da Câmara reintroduziu esse cunho ácido no humor
dos finais de oitocentos.
Filho de um oficial expedicionário, e de uma
luso-goesa, Tomás Júlio Leal da Câmara nasceu em 30/11/1876 em Nova Goa. Em
Lisboa, já órfão de pai, resiste à Agronomia e Veterinária, para onde a família
o encaminhava, preferindo tratar da «saúde» de outros animais e parasitas,
através do traço microscópico da caricatura, seguindo o seu lema «comentar,
causticando».
Os primeiros desenhos publicados surgem, desde tenra
idade, mas seria a partir de 1896 que a sua carreira tomaria um aspecto mais
profissional, colaborando no «Branco e Negro», em «Os Ridículos», para ainda
nesse ano tomar a direcção do hebdomadário «D. Quixote», de curta duração. Em
97, em colaboração com João Chagas, lança-se na «Marselheza» («Que deveria ser
«República» como o desejavam os seus editores) numa feroz campanha contra o
rei, a monarquia e os políticos decadentes, de um rotativismo gasto e
estagnado. A caricatura, em Portugal, reconquistava o seu espirito de origem
(contra o cabralismo), como panfleto republicano, sendo este já mais maduro e
inteligente.
A «Marselheza» foi um acumular de multas, apreensões…
transformando-se no «jornal de maior
circulação… em todo o Governo Civil», dominado pelo célebre Juiz Veiga, o «novo caricaturista» do nosso
pensamento.
Uma das proibições da censura, foi a retratação
caricatural do rei, mas, como diria mais tarde António Salazar, «os verdadeiros pensadores, os que pensam,
transpõem, sem ninguém dar por isso /…/ todas as possíveis limitações», e
foi o que aconteceu – o chapéu à Mazantini (chapéu típico que o rei usava), e
uma série de objectos, como um barril, umas botas de montar…. reconstruindo a
sua silhueta iconográfica, passaram a simbolizar o proibido (também
reconstruida por uma montagem de caricaturas de seus ministros…).
Entretanto a «Marselheza» foi mesmo proibida,
renascendo com o nome de «Corja» (1898), mantendo-se o mesmo jogo de gato e
rato, mantendo-se as mesmas directrizes, e consequentemente as mesmas
atribulações persecutórias, até que, em outubro desse ano, o Poder não aceita
mais este incómodo crítico, e procura-o para o levar para a prisão e degredo
(sem direito a defesa em tribunal). Avisado por amigos, escapa-se para o
exílio, primeiro em Madrid e depois Paris.
Leal da Câmara e Celso Hermínio foram o período mais
agressivo da caricatura no regime monárquico deste final de século, em prol das
ideias republicanas que se expandiam como esperança de um novo Portugal. Ao
mesmo tempo, foram a primeira revolta ao traço rafaelista, apresentando Leal um
traço simples de contorno, por vezes anguloso, numa perspectiva pré-modernista.
Permanecendo um ano em Madrid e onze em Paris,
conseguiu o êxito que cá não teve, emparceirando com os nomes da caricatura internacional.
O seu contacto com Portugal manter-se-á, em 1899, como
colaborador do «Diabo», para se silenciar depois até 1908, altura em que
reaparece em «O Século».
Regressa do exílio em 1911, porém será já outro
artista, mais maduro, menos irreverente, e logo desiludido. Tenta regressar
como um mestre, que não tem seguidores directos. Expõe, criando uma arte de
expor, faz conferências… Acabará por regressar a Paris, mas por pouco tempo,
devido à Grande Guerra. Regressa em 1915, instalando-se no Porto, criando a
tertúlia de «Os Fantasistas», os quais realizaram algumas exposições, e
editaram um jornal («O Miau»).
A caricatura continuou a ser a sua expressão normal,
colaborando em quase todos os periódicos que aceitavam o seu trabalho. Se o seu
traço bem característico se expandia, já não era o panfletário anti-monárquico,
mas o humorista com intenção de corrigir, de expor o homem perante o espelho do
riso - «saber rir é já alguma coisa, mas
fazer rir os outros é mais do que um talento. É quase uma caridade!»
Acumulando com esta actividade, prosseguirá a carreira
de conferencista sobre o humor, publicidade e decoração; de professor de
desenho industrial; de designer; de pintor e de «protector» da aldeia da
Rinchoa. Tinha regressado a Lisboa em 1920, e em 23 compra uma casa na zona
saloia da Rinchoa / Sintra, para onde se exilará, dedicando-se com especial
carinho ao desenvolvimento desse espaço regional (ainda típico), e a fixar no
papel essas personagens pitorescas que se iam extinguindo com o avançar da
«civilização» urbana. Foi o tempo dos seus quadros de saloios e pierrôs. A alma
revolucionária dava lugar ao eterno romântico que vive inconscientemente em
todos nós.
Em 1937 ainda formaria um novo Grupo dos Humoristas,
mas os tempos não estavam para graças e, apesar de dois anos com alguma
intensidade de conferências, exposições e almoçaradas, foi sol de pouca dura.
Um «último» gesto de irreverência humorística de um mestre que morreria em
1948.
A casa da Rinchoa é hoje a sua Casa-Museu Leal da
Câmara.