Tuesday, December 29, 2020

Caricaturas Crónicas: «Imaginário de Lisboa» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 22/3/1987)

No século XIX, a cidade libertou-se do rio, sem renegar as suas brumas sebastianistas, virou-lhe as costas, entregando-se a uma morte lenta. A norte nasceu uma avenida anã como primeira pedra de uma cidade nova.

 

«Acordas num lugar de brumas: brumas azuis e cor-de-rosa. - evocação lírica de Cecília Meireles na sua viagem a Portugal em 1934, com seu marido o caricaturista Fernando Correia Dias - Não tens a certeza do céu, mas sentes em redor de ti um arejado bocejo de água. Dizem-te LISBOA. Não podes ainda ver claramente. São tudo espumas de aurora. Mas de repente o sol atira certeiro uma chispa de ouro. E sentes um brilho súbito de nácar descoberto. Repetem-te: LISBOA».

Das brumas, das nuvens fluviais surgem colinas de amoreiras, surgem «Guerreiros medievais escoltando a sua dama» (sic T. Taveira), guerreiros perdidos numa cidade à procura de um imaginário.

Quem entra na cidade pelo poente marítimo, e se surpreende por esta visão medieval, logo se recorda que o primeiro cavaleiro portucalense que pôs um pé dentro da cidade se entalou, e desde aí todos andamos «entalados». Martim Moniz se chamava, entalou-se numa porta, mantendo-se hoje entalado entre bairros / história em degradação, e projectos urbanísticos que nunca se concretizam. Entalada entre imaginários cenários e desconstrução histórica, a cidade tem sobrevivido.

Nascida do Tejo, com ele tem vivido / sonhado, e se a simbologia lhe deu sete colinas por superstição mágica, só tem um rio como esgoto. Dele dependeu, nele se espraiou, crescendo com e pela história.

Um terramoto a destruiu, sendo reedificada segundo um plano urbanístico, o único global desta cidade secular, salvo os que aparecem em períodos eleitorais. Cidade / aldeia, cresceu como testemunho das colónias emigrantes que por aqui se fixaram; cresceu com sonhos esporádficos de cosmopolitismo europeu, expresso em shopping centres.

No século XIX a cidade libertou-se do rio, sem renegar as suas brumas sebastianistas, virou-lhe as costas, entregando-se a uma morte lenta. Procurou um novo norte, e a norte nasceu uma avenida anã como primeira pedra de uma cidade nova. Cidade entalada por construtores civis, engenheiros, e por vezes arquitectos, pouco teve de urbanistas, existindo contudo sonhos, projectos de imaginário fabuloso.

«”Coincidirá isto com a derrocada, ou pelo menos a larga desabridação dos bairros infectos d’Alfama, Castelo, Mouraria, Alcântara e outros muitos onde a população trabalhadora se comprime, e mais ou menos são montureiros de gente, destruidoras da mocidade e vigor da raça popular – recomenda Fialho de Almeida” /…/ Não devem os municípios dar ouvidos à arqueologia piegas que em certos bestuntos confunde o respeito das coisas artísticas com a monomania idiota de conservar tudo o que é velho. /…/ (conservar sim) um ou outro edifício, arco ou recanto, valendo mais como reprego cenográfico do que como amostra arquitecturaL dos séculos que conta…». Opiniões à muitas, e esta é uma opinião não concretizada na época, mas consentida hoje, numa política de degradação e destruição.

Criar uma outra cidade, não medieval e não pombalina, era o desafio. Fialho de Almeida idealizava-a como cenário operático: «uma ponte sobre os vales da Avenida e Rua da Palma, ligando S. Pedro d’ Alcântara a Sant’Ana, e esta à Graça ou Monte do Castelo, era uma obra de seguro efeito cenográfico, gigantesco e pernalta, barrando o ar n’um salto audacioso».

A culminar este projecto, uma «Yoshiwhara feérica e colossal, casino e circo, biblioteca e restaurante, velódromo e frontão, hall de concertos e teatro d’Opera, n’esse recinto do chamado Castelo de São Jorge, adentro da cinta de muros onde foi outr’ora o rouqueiro da cidade».

Nesta cidade imaginária, Lisboa deve ser o lugar de prazer e vivencia, e dentro dessa linha, Ventura Terra idealiza uma marginal / jardim entre Santos e Terreiro do Paço, com reencontro da cidade com o rio, por uma cenografia parisina.

Para o Parque Eduardo VII idealizam-se jardins, cascatas, monumentalidade e desenfesamento da Avenida, como resposta viária de comunicação da cidade ribeirinha com o norte, com a cidade nova.

Houve arquitectos na procura de uma linguagem nacionalista, outros houve que procuraram impor estilos internacionalistas, mas em todos se caracterizou uma tradição cenográfica, que os cenógrafos do Teatro de São Carlos – Cinatti, Manini… - conseguiram deixar como testemunho (palácio Foz, Mosteiro dos Jerónimos…). A arquitectura é a expressão de uma sociedade, e neste caso, pelos vistos estamos perante uma sociedade de opereta. Lisboa passou a ser sonhada como cenografia para deleite de turistas, é a busca de uma «linguagem de comunicação… para comunicar com os extraterrestres» (sic Tomás Taveira).

Hoje, a cidade cria imaginários em diálogo com extraterrestres, ou com elites de opereta, imaginários implantados a ferros e espelhos sem diálogo com o entorno, com o passado, com o presente, com o futuro da sua população emigrante, com a cidade como entidade global para gozoi e vivencia. Lisboa entalada entre politiqueiros e construtores civis, passou a escritório onde se vem trabalhar.

Acordas enlatado em brumas; brumas cinzentas de comboio e laranja de autocarros. Não tens a certeza do céu, mas sentes em redor de ti um arejado bocejo de ar «condicionado». Dizem-te Lisboa. Não podes ainda ver claramente. São tudo espumas de burocracia…


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