Wednesday, December 09, 2020
Caricaturas Crónicas – «As “fontes” da caricatura» por Osvaldo Macedo de Sousa (In Diário de Notícias de 9/3/1986)
O caricaturista é uma
criança que, na sua fantasia estética, inventa mundos de humor, mundos de
espelhos às avessas, mundos onde o Zé Povinho por ser soberano, onde a miséria
se pode transformar num sorriso em ironia, onde a verdade supera a realidade.
Como fonte destas
deambulações imagísticas, existe a visão caricatural de um mundo que, se não é
para fazer rir, é para desejar que os átomos se revoltem, que se desvaneçam no
pó que nós somos.
Como fonte de inspiração, ou
como brinquedo do caricaturista – humorista, na manipulação do real poder, foi
criado o político.
O humor é então um confronto, é uma «criança ingénua»
que se ri do poder, que brinca com ele, joga-o a pontapé da sátira, torce
achata, estica, mascara-o ou desmascara-o. Transforma o Polichinelo em «deus político» (Raphael Bordallo
Pinheiro in «Lanterna Mágica» 29/5/1875), em «Santo António de Lisboa» (R.B.P.
in «Lanterna Mágica» 29/5/1875).
Santos e Reis Antónios têm havido vários, assim como
polichinelos António na política portuguesa. Este, de que temos cindo a falar é
a «fonte» vivificante da caricatura oitocentista, é uma das razões da existência de um dos maiores
caricaturistas portugueses, é o António Maria Fontes Pereira de Melo - «Quem tudo rege, ordena e manda» (Raphael
Bordallo Pinheiro in «António Maria» 6/7/1882)
O Fontes foi o centro, foi a fonte inspiração, de
ironia, a «espinha» atravessada na
garganta do Zé (R.B.P. in «Pontos nos ii» 18/6/1885) durante várias décadas.
Foi o político que mais humor e caricaturas, originou em toda a nossa história
da sátira gráfica. Ora, se o Zé Povinho é o símbolo do povo português, quase se
poderia dizer que o Fontes é o símbolo do nosso político: «Caro Fontes, qual é a tua opinião a respeito da “mão calosa do
operário”?
- É que lhe
devemos prometer agora com a esquerda o que quando estamos no poder lhe
costumamos tirar com a direita»
(Raphael Bordallo Pinheiro in «António Maria» 27/11/1879).
Assim faz o político, mas também assim o desmascara o
humorista. Todos os artistas da sátira política exploraram ao máximo os
movimentos do Fontes, mas seria Raphael que faria dele a sua fonte de
existência fundamental. Ambos jogaram como contraponto e, até um dos seus
jornais foi baptizado com o nome do outro - «António Maria».
O «António Maria» foi um sol para os caricaturistas
seguidores da escola rafaelista, assim como o sol Fontes foi tão forte que
derreteu os seus opositores, ou o Zé pelo calor dos impostos (R.B.P. in
«António Maria» 7/12/1882.
Iniciando a sua carreira como deputado, passaria por
várias pastas ministeriais, até passar por todos os lugares possíveis da
governação: «O Homem dos sete
Instrumentos - Admirae-o, senhores. Elle toca a Presidência da Câmara dos Pares
com o queixo; toca a Presidência do Supremo Tribunal Administrativo com a
cabeça; toca o Generalato com os punhos;
toca a governação do credo hypothecario com a testa; e toca o poder
oculto com o nariz!» (R.B.P. in «António Maria» 23/6/1881). No final, não
passava de uma «velha raposa matreira»
(Sebastião Sanhudo, in «Sorvete» 28/2/1886).
Ser humorista, ou ser político, é um destino de «ódio»
e admiração. O humorista é obrigado a buscar a sua fonte satírica na governação,
ou desgoverno, no politico matreiro que joga pela manha com o Zé. O político é
obrigado a ser velha raposa, para poder sobreviver no Poder, e odeia o
humorista que o desmascara, que o satiriza, que faz dele a fonte de riso da
oposição, que faz dele a descarga dos maus humores sociais. Mas, no fundo
existe também um lado de admiração, seja pelo lado estético do artista, seja
pela arte do «trapezista» na corda bamba da política.
Também Raphael e Fontes foram admiração, critica e
perseguição, mas, no final, quando a morte desfez o jogo (1/1887), Raphael
saudou o seu adversário, reconhecendo que «por
mais que se encarrapitem, nenhum (político) é capaz de lhe chegar ao pulso» (R.B.P. in «Pontos nos ii»
3/2/1887).