Wednesday, December 30, 2020

Caricaturas Crónicas: «Arnaldo Ressano – o contra-senso» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 29/3/1987)

 A caricatura é o exagero na sátira, a ironia do carácter, a irreverência na ordem, a ordem irreverente. Tudo isso é Arnaldo Ressano Garcia, nato em 1880, nesta cidade de Lisboa, militar por carreira, caricaturista por expressão.

As primeiras notícias do seu espírito satírico publicado, datam de 1901, impondo-se como perito do retrato caricatural. Discípulo de Luciano Freire no desenho, e na formação naturalista, não deixa de mostrar, de imediato, as suas qualidades satíricas e caricaturais.

De 1906 a 1910 manterá o seu espirito caricatural vivo, publicando regularmente os seus trabalhos, em periódicos como o «Arauto», «Revista Nova», «Ilustração Portuguesa», «Pst»…

Entretanto, tinha ingressado na carreira militar, onde, durante 25 anos, a disciplina e a ordem se contrapõem, em espirito, à possibilidade de expressão da sua veia irreverente e satírica. Como militar, ascendeu até ao posto de coronel, exercendo o professorado em campos ligados ao desenho, na Escola do Exército e na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

A irreverência juvenil tinha dado lugar à ordem como profissão, e seria por volta de 1935, quando a «passagem à reserva» o começava a apoquentar, que a arte da sátira renasce dentro dele, ou pelo menos renasce a vontade de a publicar. Nesse mesmo ano surgem, no «Sempre Fixe», os seus novos desenhos.

Este reencontro da caricatura de Arnaldo Ressano com o público foi em força, e com decisão, coincidindo o reaparecimento dos seus trabalhos nos periódicos com uma grande exposição na SNBA. E a publicação de um «Álbum de Caricaturas», como o seu manifesto em arte - «o equilíbrio, o saber, o estudo, o bom desenho, a bela pintura, a perfeita estilização, a elevação nas ideias, no sentimento e na sensibilidade». Surgia como ideal no extremo da deformação, como defensor do academismo, no extremo teórico: «como me prezo de desenhar honestamente, os meus trabalhos afastaram-me, naturalmente, do convívio dos chamados avançados».

Partiu então para Paris, com bolsa de estudo, não para estudar as técnicas e estéticas, mas para «desvendar a razão de ser, a origem e explicação, desse tufão destruidor» que é a «revolta internacional contra a cultura mental, procurando mergulhá-la no pântano escuro da selva. /…/ Aqueles a quem esta desorientação das artes aproveita, aqueles que a deflagram, são os inimigos seculares da civilização cristã. Com esta desorientação antiestética e paranoica, eles bem sabem que a vão atingir em pleno coração, isto é, na sua espiritualidade».

Partiu numa cruzada estética, onde a política e sua moral conservadora lhe toldava o espirito analítico: «E as obras ultimamente impostas, por todos os falhados, que nada sabem, que nada pensam, que nada respeitam, e ainda menos estudam, são absolutamente iguais às de todos os falhados do resto do mundo, e portanto internacionais». Tudo o que fugia à sua compreensão era etiquetado de internacionalista-comunista, que no tempo era o mesmo, englobando esteticamente os futuristas-fascistas, futuristas-comunistas, cubistas, expressionistas…

Nesta primeira metade do século XX a política dividia-se não em esquerda e direita, mas em internacionalismo e nacionalismo, englobando is primeiros as vanguardas e os segundos os academismos.

As transcrições anteriores pertencem à conferência que Arnaldo Ressano proferiu em 1938, no seu regresso, na SNBA, como conclusão do seu estudo. Regressava então com o intuito de dirigir e corrigir a arte nacional, afastando o «intrujismo» modernista da protecção estatal, e até eclesiástica. Foi uma luta inglória e ridícula de afastar o pobre modernismo do «mundo português».

Tendo iniciado, como artista, uma carreira em naturalismo satírico, ele soube dar o seu cunho de originalidade pelo humorismo incisivo. Quando reapareceu, em 1935, publicando no «Sempre Fixe» (jornal essencialmente modernista), «Diabo», «Risota», «Século Ilustrado», «Ocidente»… verifica-se apenas um maior domínio do desenho e da deformação.

A sua caricatura é a interpretação psicológica, na deformação satírica, não só das fisionomias, como do todo anatómico, em sugerência de «ave», o «animal», a «coisa» que existe dentro do ser, da alma… do espirito de cada um. As mãos, os corpos, são a expressão de uma síntese no exagero de um ser caricaturado.

Partindo do «equilíbrio» na deformação, do «desenho honesto» na ironia, da «perfeita estilização» na incisão satírica, da «sensibilidade», ele criou uma obra que na teoria respeitava os seus ideais, mas que na prática se lhe opunham. Sem pertencer à caricatura modernista, ele atingiu a «vanguarda» que combatia, pelo academismo no grotesco.


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