Thursday, December 17, 2020

Caricaturas Crónicas: «Abel Salazar: um sentir caricatural» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 3178/1986)

Natural de Guimarães, ele é, sem dúvida, mais um exemplo do médico-artista, do homem dividido entre a Ciência e as coisas do espírito.

 

«A realidade, em arte, não é uma finalidade mas um elemento e um meio de expressão: a arte procura realizar o seu conceito preenchendo a forma pela realidade, mas dispensa-a imediatamente sempre que pode. /…/ As criações da arte, no que diz respeito à figura como à paisagem, contêm sempre, sem o que não podiam ser criações, um caracter próprio, independente da Natureza, dependente do artista. /…/ esse caracter resume-se, com efeito, numa simples e ligeira modificação das relações existentes entre os elementos da Natureza» (Abel Salazar). Neste jogo de relações entre a realidade e a «charge»-modificação, entre o naturalismo lírico e o expressionismo dramático, Abel Salazar criou a sua obra em espírito estético.

Natural de Guimarães (onde nasceu a 19 de Julho de 1889), licenciar-se-á na Faculdade de medicina do Porto e doutorou-se na mesma Faculdade, em 1915, com a tese «Ensaio da Psicologia Filosófica», encarregando-se posteriormente da cadeira de Histologia e Embriologia, e da direcção do Instituto das ditas ciências. Nestes campos desenvolverá profunda investigação, iniciando novos métodos de técnicas cientificas, adoptadas depois universalmente. Publicou vasta bibliografia sobre estes assuntos. Como prosador, não lhe foi indiferente a filosofia das ciências, assim como a filosofia de arte.

Em 1935, teria problemas com o regime, e o ditador António Salazar ordena a sua expulsão da Universidade. Depois, seguiu-se uma longa luta, e o triunfo do seu prestígio e qualidades cientificas e intelectuais, sendo-lhe confiada, em 1941, a direcção do Centro de estudos Microscópicos,  na Faculdade de Farmácia do Porto, colaborando também, a partir de 1942, com o Instituto Português de Oncologia, até à sua morte a 29 de Dezembro de 1946.

Este foi o seu percurso cientifico, a sua vida como fadiga, e se a arte surge como expressão no seu lazer, como «criação de férias», o ser cientista e artista é uno, na visão do mundo. O materialismo, como anseio do real, enlaça-se com o sonho, e a arte para Abel Salazar ultrapassa as visões científicas geometrizantes, por que ela «não consiste em fazer novas combinações com as matemáticas já conhecidas. Isso, qualquer pessoa poderia fazê-lo, mas as combinações que se poderiam obter assim seriam em número infinito e o maior número seria em absoluto destituído de interesse», Por outras palavras, seria uma arte de amador, o que não acontece com a obra deste amador, por pouca disposição de tempo.

Na sua obra, o esquema é dinâmico, com um ritmo de composição rigoroso, onde a figura, como linha e volume, traduzem a ansiedade dramática do seu espírito de homem, que vive os sentimentos da humanidade, como médico-artista.

A cor perde muitas das vezes a prioridade, para provocar apenas as atmosferas, dissecando os corpos como contornos, para exprimir o quotidiano obreiro, as emoções da figura na rua, onde a mulher e sua sensualidade têm um lugar marcante. Autodidacta, soube dominar as técnicas do óleo, carvão e lápis, para traduzir a visão, que no desenho transformou-se num verdadeiro diário de imagens. O neopositivismo da sua arte e filosofia, antecipam o neo-realismo na nossa arte.

Após este longo discurso, sem falar em humor ou caricatura, perguntar-se-ão porque é que trato, neste espaço, do artista Abel Salazar. Existem, no entanto, duas razões: entre a  sua obra encontra-se uma série de caricaturas(do período dos Salões dos Humoristas, em que participou); o seu realismo, como conceito de modificação nas relações entre o artista e a Natureza, raia o caricatural, como caligrafia do realismo social, muita das vezes panfletário, como o é a sátira.

O ser satírico ou caricatural nem sempre é uma técnica, é fundamentalmente uma expressão, um espirito, um sentir.


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