Friday, December 18, 2020
«BD ontem e Hoje – As origens da Banda desenhada» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 21/9/1986)
Narrar é uma das mais velhas artes do Homem, nascida na sua necessidade de aprender, conhecer e controlar a natureza e o mundo que o envolve. Como meio tradutor, utilizou primeiro o mundo dos sons ou dos gestos, fixando depois a comunicação a «longo prazo» na representação gráfica por símbolos naturalistas ou abstractos.
O que hoje designamos por «banda desenhada», consiste numa sequência de imagens-desenho que articulam uma narrativa, uma história. Nessa perspectiva de conceito, numa interpretação simplista, podemos descobrir como antepassados remotos dessa «nona arte», os registos das grutas de Descaux (entre muitas outras), as representações nas catedrais góticas (falando apenas do mundo ocidental), nas «bíblias dos pobres» da Idade Média… em todo o manancial de comunicação gráfica, acessível a letrados e iletrados.
Apesar deste paralelismo técnico e expressivo, a banda desenhada, considerada como uma arte de estrutura e regras próprias, nasceu no século em duas datas específicas, afastadas no tempo, na geografia e na concepção criativa.
Na europa, durante o séc. XIX, a par da sátira política, os humoristas gráficos cultivam cenas de género, ou simples piadas anedócticas. Estas, feitas numa prancha só, foram crescendo pela necessidade visual de dar movimento, acção, ampliando-se a sua execução por dois, três, quatro…. «quadradinhos», tanto em historias mudas, como com pequenas legendas narrativas.
Foram vários os artistas que evoluíram por esta fórmula, utilizando-a de vez em quando. Por essa razão, será difícil a datação exacta do seu surgimento como «género» independente, mas por questões históricas costumam-se considerar três nomes como seus fomentadores: Töppfer (1799-1846), um cultor e teorizador desta arte; Wilhelm Busch (1832-1908), na exploração narrativa do texto literário, com a ilustração paralela ao primeiro, desenvolvendo um tipo que dominará a banda desenhada na Europa por largo tempo; Caran d’Ache (1858-1909) na concentração narrativa do traço e grafia, sem necessidade de suporte literário (há outros nomes importantes na Holanda, Inglaterra… mas que acabaram por não serem influenciadores para outros países).
Emigrando para a América, o europeu levou consigo a sua cultura, gosto, forma de viver, Levou o humor e a nova fórmula narrativa, aqui substituída a banda por tira, a «tira cómica» (comics strip). Na nova terra, ganhou características próprias e, em Fevereiro de 1896, com o aparecimento da personagem Yellow Kid (que reúne em si toda uma série de elementos já existentes, mas dispersos em outras personagens e autores europeus), os americanos gostam de impor como o nascimento oficial dos Comics, ou seja da banda desenhada contemporânea. O que se poderá dizer é que é o seu nascimento como uma indústria de massas.
Estas sequencias de imagens apareceram essencialmente como entretenimento destinado ás crianças. Nascida numa sociedade burguesa, onde reina o espirito comercial, vão ser presenteadas com uma indústria própria de diversão, educação… que fomente simultaneamente o espírito de consumismo. Na América, o analfabetismo foi o pólo catalisador, já que a comunicação visual é propícia ao entendimento entre pessoas de línguas diferentes, entre iletrados, que facilita o diálogo, a propagação de normas e regras, que mantém o controlo do conhecimento, como forma de manter o Poder afastado das massas. Como dizia Töppfer «grosseiro mas apropriado maravilhosamente à natureza e ao repouso de espíritos brutos e sem cultura».
Por detrás do desenvolvimento do «comic» está a guerra entre as potências jornalísticas, a necessidade de artifícios na captação de públicos. Para isso, procuram-se os melhores desenhadores e guionistas, compram-se os direitos sobre dos «heróis» mais populares. A um maior investimento, correspondeu um desenvolvimento artístico, um amadurecimento desta nova arte.
A narrativa desenvolveu-se do simples «gag», à história de sequência curta, como testemunho da vida dos mais pobres a quem era dirigida, da vida das crianças travessas que fazem as historias inocentes e cheias de fantasia. O «herói», como personagem que surge com a periodicidade diária ou dominical, conquistou o seu canto próprio em histórias conclusivas, mas de continuidade. Em 1903, Opper introduz o suspense, como prolongamento das aventuras, como captação do interesse na continuidade e consequente compra do número seguinte do jornal.
A fantasia dos criadores não ficou apenas pelo suspense diário (ou semanal), mas também na elaboração de grafias maravilhosas, temáticas surpreendentes como ficção científica, novelística policial, surrealismos… e toda uma forma de sonorização (onomatopeias), como o «balão» que induz os diálogos na vivificação das personagens. Se a Banda Desenhada europeia pertencia amais a um universo literário, o «comic» americano pertence mais ao universo visual, gráfico: no primeiro a narrativa está no texto, enquanto no segundo está no desenho; num não há diálogo ditrecto entre o texto e o desenho, o outro uma total integração. Dois mundos diferentes de evolução de um género gráfico-literário, que tiveram que lutar pela sobrevivência de opções, até ao triunfo de uma delas.
Na Europa manteve-se essencialmente a estrutura literária por várias décadas, dedicando-se a um público infantil e juvenil, por simples recusa dos editores, apostando numa visão mais pedagógica que de divertimento. No entanto, estes nem sempre conseguem controlar o gosto do público, e a crescente importação de comics americanos, provocou o inevitável.
Os EUA, após um período de extrema fantasia, de surrealismo ou de simples testemunho de histórias familiares, vão conhecer, nos anos 30, a exploração da acção e realismo (acompanhando o gosto cinematográfico). Testemunhando as atitudes e preocupações, os temores e aspirações do momento, realizam, a «catarse» com os «super-polícias», os «super-homens» opu «super-heróis» que, facilmente vencem a vida em que o pobre leitor se afunda.
Em Portugal, as «historias aos quadradinhos» surgiram nos anos 60 de oitocentos com Nogueira da Silva, mas fundamentalmente através do humor político dos anos 70/80, como desenvolvimento das sátiras de Raphael Bordallo Pinheiro. Artista informado e viajado, ele não só desenvolveu esta fórmula, como importou, para os seus jornais, trabalhos de Caran d’Ache, e incentivou o seu filho Manuel Gustavo a criar histórias gráficas, EM QUIE OS «Typos e Costumes» foi a primeira série em presença regular.
Vários foram os caricaturistas que, como Celso Hermínio, Leal da Câmara, Alonso, Jorge Colaço, Valença… exploraram as narrativas ilustradas, mas sempre com preferência pelo cunho político. No desenvolvimento das historietas, depois de Manuel Gustavo Bordallo Pinheiro com suas «diversões» de crítica social, surgiu Stuart Carvalhais com os seus heróis «Quim e Manecas», em que a fórmula do comic foi explorado, e por vezes antecipada.
Os anos vinte, foram a descoberta do mundanismo, a proliferação de revistas, onde as «historias aos quadradinhos» conquistavam o seu espaço sob o traço de Stuart, Cottinelli Telmo, Carlos Ribeiro, Tom, Cardoso Lopes, Fernando Bento… num paralelismo estético e temático com a banda desenhada europeia.
Após o final da Segunda Guerra Mundial, o estilo americano impôs-se, uniformizando esta arte, ao mesmo tempo que ela se abria para uma maior exploração e liberdade gráfica, no triunfo dos traços vanguardistas, nas técnicas mais ousadas e díspares. Nascida como entretenimento infantil, ou aculturação das massas, hoje a banda desenhada é uma das artes dominantes das novas narrativas.