Thursday, December 10, 2020

«Arte - Irreverência – Almada Negreiros» por Osvaldo Macedo de Sousa (in revista «História» nº 92 Junho de 1986)

Anos 10, anos de revolução, anos de irreverência, não só em Portugal, como em toda a europa. Neste país, essa irreverência irrompeu primeiro na moderação dos «Livres» e dos «Humoristas», passando pelos «Modernistas», expressando-se no máximo da sua força escandalosa, neste trio a que temos vindo a dedicar atenção – Amadeu de Souza Cardoso na pintura; Santa-Rita Pintor na sua forma de estar na vida; e Almada Negreiros como união das três irreverências, a pictórica, a vivencial e a da palavra, para domínio de uma só, ou fundamentalmente, a da palavra.

 

Portugal sempre quis ser um belo jardim plantado à beira-mar, mas nunca passou de uma «horta saloia». As primeiras irreverências, fê-las D. Afonso Henriques, e desde aó os «Dantas» predominaram. Mas, «o Dantas cheira mal da boca.

_ Se o Dantas é português, eu quero ser espanhol.

- Portugal que com todos estes senhores conseguiu a classificação do país mais atrasado da Europa e de todo o Mundo! O país mais selvagem de todas as áfricas! O exílio dos degredados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos sabujos!» («Manifesto Anti-Dantas» - 1915).

Não existia uma tradição de escândalo intelectual, provocação estética ou irreverência existencial no nosso país. Havia porém, um espírito de revolta, dinamizado pelas políticas de mal-governo, mas, até esse espírito estava imbuído de um sentimento de fracasso, subjacente na evolução da nossa história. Também em 1910 se deu uma revolução de regime e também nos anos 10 fracassou. Não como derrube da monarquia, mas como resolução dos problemas do País.

«E não pertenço a nenhuma das gerações revolucionárias. Eu pertenço a uma geração construtiva /…/É preciso criar as aptidões pró-heroísmo moderno, o heroísmo quotidiano» («Ultimatum Futurista» - 1917).

A irreverência não é uma revolução, mas uma forma de estar na vida, são as ideias, o tom, e fundamentalmente, as fórmulas utilizadas para despertar os «Dantas» da letargia. Souza Cardoso foi irreverente pela pintura, mas não passou de um cometa, visto por poucos, na vida portuguesa. Santa-Rita foi irreverente na sua vivência com o País, que não era outra coisa, que o mundo-ilha do Chiado. Almada, encerrado também nesse mesmo micro-cosmos do Chiado, levou a sua irreverência para além dessas fronteiras. É a palavra como manifesto, é o desafio ao mundo português: «Vós ó portugueses da minha geração que como eu não tendes culpa de serdes portugueses, INSULTAI O PERIGO» («Ultimatum Futurista» - 1917).

Como nasceu português, este «insultor do perigo»? António Lobo de Almada Negreiros era administrador do concelho de S. Tomé, casado com a filha de um colono, e aí nasceria José Sobral de Almada Negreiros a 7 de Abril de 1893. Nascia como africano, numa «África reclusa dos europeus», como português em «exílio dos indiferentes». Em 1900, vem para a metrópole e é internado no Colégio dos Jesuítas de Campolide. Aí aprende a concepção mais reacionária da vida, o pensamento jesuítico, o pensamento católico-burgês que ele combaterá posteriormente pela irreverência, como revolta à educação de «espartilho» - «Toda a modernidade luta contra a subordinação, contra o suborno da pessoa humana pelo forçoso da sua posição no quadro social». (Orpheu» - 1915).

Partindo de uma educação conservadora, ainda no colégio procura, pela sátira, a «República» como solução de revolta, o «Mundo» ou a «Pátria» como encontro. Não passaram de esboços, expressos em jornais manuscritos (inéditos – 1906), mas eram já o pronúncio de provocação ao conservadorismo, era o desejo de criar um Portugal novo, que ele não sabia como devia ser, mas que sabia como sonhar: «O povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo, todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, portugueses, só vos faltam as qualidades». («Ultimatum Futurista» - 1917).

A falta dessas qualidades era, para Almada, a maior ofensa que este povo lhe poderia fazer, por isso partiu para as artes, satirizando-o. Entrará nas artes pelo humorismo, o género artístico que então, mais oportunidades de liberdade estética e de retribuição monetária, dava.  Foram desenhos onde a irrever~enciaainda aprendia a medir o mundo, foram traços na apreensão do espaço limite da linha. Ainda aprendiz, partia já com uma opção: «esquecer Raphael Bordallo Pinheiro em favor de Celso Hermínio». Nesta opção, está já patente a orientação de ruptura da sua obra futura, ou seja a linha como liberdade e contorno.

O seu primeiro desenho a ser publicado, saiu na revista «A Sátira» em Julho de 1911. Em 1912, participa na 1ª  Exposição dos Humoristas em Lisboa, na condição de par de um Christiano Cruz (seu mestre), Stuart, Colaço… Em 1913, realiza a sua primeira exposição individual - «Eu creio que ele tem talento. – escreverá Fernando Pessoana «águia» como crítica à exposição – Basta reparar que ao sorriso do seu lápis se liga o polymorphismo da sua arte para voltarmos as costas a conceder-lhe inteligência apenas».

Não tinha apenas inteligência, tinha também uma alma em ebulição, de criatividade e originalidade, tinha arte. O humor foi como que uma porta, para a sua libertação dos academismos, foi a aprendizagem da mão, foi a primeira ebulição, em ironia, de uma revolta. A seguir à ironia, veio a inundação, pela escrita e vivência.

Pode-se dizer que desde a revolução de 1910, quando vem para a rua procurar o novo mundo, nascido em republicanismo, teve intervenção em quase todas as manifestações culturais na procura de uma nova arte-sociedade. Leal da Câmara tinha dito que «a caricatura ia na vanguarda do movimento», e ele esteve entre os caricaturistas-humoristas nos seus primeiros salões e, voltaria sempre a este género, quando desejava uma intervenção directa e moderada.

Porém, nos anos 10, o humor não o satisfaz plenamente, apesar de chefiar, durante algum tempo, a crítica mais acérrima à República, dirigindo ele próprio o periódico pró-monárquico «Papagaio Real».

O tom da crítica subia pela palavra e, em 1914 (27/5), numa entrevista ao jornal «República», ele declara: «A nossa sociedade é uma mina de caricaturas. /…/ Só a aldeia é sã, e sã porque não teve ainda testamento de beneméritos a deshonestá-la com uma escola. O nosso povo é belo enquanto analfabeto. Se um dia tiverem por lembrança educa-lo e o fizerem, conseguirão do seu pulso um medíocre a desilustrar a sua terra altamente representado na profissão dele».

«Odeio tudo quanto o progresso perfilhou: e a nossa sociedade não é senão tabaco ordinário a fingir de fino numa apresentação bonita».

O humor tinha-lhe indicado o seu inimigo. Não era o progresso, nem a civilização ou cultura, mas o burguês e sua concepção falsa da civilização e progresso; os «Dantas» academistas que não deixam liberdade de pensamento a quem queria ultrapassar as ideias do tempo. O humor, pela ironia, dava então lugar à provocação directa; os esquemas literários simbolistas, davam lugar a expressões poéticas violentas; a irreverência rompia os preconceitos «dantaescos»:

«Ergo-Me Pederasta apupado d’imbecis.

Divinizo-Me Meretriz, ex-libris do pecado,

e odeio tudo o que não Me é por Me rirem o Eu!»

                               («A cena do ódio» - 1915).

A melhor forma de romperem este círculo de monotonia, era partir para novos horizontes, era procura-los para além das nossas fronteiras, e não regressar, ou então, transportar esse «novo mundo», em formas de «Orphismo», «Futurismo», para este país de retrógrados: «Algumas das raras energias mal comportadas que ainda assomam à tona d’água, pertencem halucinadamente a séculos que já não existem e, quando Um português, genialmente do séc. XX, desce da Europa, condoído da pátria entrevada, para lhe dar o Parto da sua Inteligência, a indiferença espartilhada da família portuguesa ainda não deslaça as mãos de cima da barriga». («Manifesto da exposição de amadeu de Souza-Cardoso – 1916).

Os seus manifestos, ou manifestações, são uma posição cultural e, da mesma forma, política. A polémica ideológico-literária é a revolta «dadaísta» ou «futurista», é a procura de um «leit-motiv» como farol estético-filosófico, o qual pode ser incorporado na ideia «pátria portuguesa»: «Eu sou uma poeta português que ama a sua pátria. /…/ Eu sou aquele que se espanta da sua própria personalidade, e creio-me portanto, como português, com o direito de exigir uma pátria que me mereça. Isto quer dizer: eu sou português e quero portanto que Portugal seja a minha pátria.

Eu não tenho culpa nenhuma de ser português, mas sinto a força para não ter, como vós outros, a cobardia de deixar apodrecer a pátria». («Ultimatum Futurista à Gerações Portuguesas do séc. XX» - 1917).

Despertar o país da cobardia era o intuito da irreverência, e a fórmula foi ser nihilista, quando acreditava em alguma coisa, ser desprendido e livre, quando desejava algo, ser anarco-futurista, quando a ordem era o ideal. A irreverência foi provocação como «Orpheu», como presente quotidiano, ou como futuro(ismo), só que em vez de o terem feiro em Portugal, fizeram-no num «mundo à parte. Eles foram três irreverências que perturbaram, escandalizaram Portugal, apenas houve um erro – tanto Manhufe como o Chiado não eram Portugal e, por isso passaram despercebidos.

Em 1918 morre souza Cardoso e Santa Rita Pintor. Em 1919 Almada parte para outras fronteiras, agora geográficas, para encontrar a sua nacionalidade estética: «A Arte não vive sem a pátria do artista – eu aprendi isto para sempre no estrangeiro».

Em 1920, realiza-se em Lisboa (Teatro de S. Carlos) o III Salão dos Humoristas, como conclusão realista de uma década de irreverência moderada, como manifesto do futuro em ironia, mundanismo, em moderação modernista. As irreverências, no fundo, não passam de sonhos, neste País de brandos costumes.


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