Thursday, December 24, 2020

«A Historia do Teatro de São Carlos é um retrato da sociedade portuguesa» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 15/11/1986)

 O teatro de São Carlos foi um produto da burgesia ascendente. E transformou-se num instrumento social e cultural da sociedade dominante. O que explica que, ao longo da sua história de quase dois séculos, o destino da Casa portuguesa de ópera tenha estado sempre ligada aos triunfos e vicissitudes do Poder, usufruindo do seu esplendor, mas sofrendo-lhe igualmente os temporários ocasos. Em todo o caso – ou por isso mesmo -, uma historia fascinante contada por Osvaldo Macedo de Sousa.

 

O Teatro de São Carlos nasceu da burguesia e serviu a alta sociedade, seja ela aristocrática, burguesa ou simplesmente política. A sua existência, como não podia deixar de ser, esteve totalmente ligada a esta e aos seus problemas económicos e políticos. Dessa forma, teve grandes momentos de esplendor e periodos de regressão. O São Carlos viveu ligado a um tipo de regime  e, sempre que este perigou, também o Teatro esteve em risco de soçobrar. O Teatro de São Carlos foi como que um barometro dessa sociedade.

Tendo sido construido pela burguesia, que em breve seria nobilitada, teve a sua inauguração (30 de Junho de 1793) integrada nas comemorações reais do baptizado da princesa Dona Maria Teresa, futura rainha D. Maria II.

Com traça do arquitecto José da Costa e Silva, o Teatro é de estilo neoclássico, por via renascentista, de tipo estrutural Sghizzi-Bibiena. No interior, os decoradores escolheram o estilo rococó português, tammbém conhecido por estilo D. Maria. A sala é de planta eliptica, com cinco ordens de camarotes e uma tribuna, o que lhe proporcionava uma acústica excepcional. Posteriormente, com a deslocação do foco sonoro para 0,55m fora da actual ribalta, com sobreposição acústica da orquestra aos cantores (o que aconteceu por terem subtraido 1,80m do palco), o atulhamento do poço acustico (na reforma de 1940) e o alcatifamento da sala, perdem-se muitas dessas qualidades acusticas.

Para a estreia, foi escolhida a ópera «La Balleria Amante» de Cimarosa, sob a direcção do maestro-compositor António Leal Moreira, e os executantes foram os contratados para a companhia desse ano do Teatro. Os cenários eram da autoria de Gaspar J. Raposo e Manuel da Costa. O espectáculo foi montado por Francisco António Lodi e André Lenzi, os primeiros empresários do Teatro.

Assim nasceu o teatro de ópera, construido com esse fim, mas utilizado essencialmente como local de reunião e de diversão de uma certa burguesia aristocratizada. Como dia, em 1906, Paulo Osório - «…um teatro de luxo, um ponto de reunião quase oficial onde é vergonha não ir quando se tem um nome ilustre…». Um Teatro que tem acolhido não só ópera, como bailado, teatro dramático, comédia, circo, concertos, bailes carnavalescos, festanças e ainda manifestações políticas. Construida pela burguesia e para a burguesia, foi o grande centro aristocrático onde imperou a divisão de classes e hierarquias.

O São Carlos era uma espécie de clube onde se comentava ou festejava os acontecimentos da vida lisboeta e do país. Aqui se ostentavam as novas modas e fabulosas jóias, alardeavam-se os amores de uns e os desamores de outros. Era um ponto de encontro de tal modo importante para a sociedade lisboeta que, quando se descurava o seu serviço, ou havia ameaças do seu encerramento, logo se levantavam os arautos da sociedade. Sobre isso é interessante relembrar as palavras de Artur Trindade: «…é um meio de que não pode desfazer-se a arte, a moda, o chic, inclusive… a política internacional. O olhar de uma linda embaixatriz através das lentes de um binóculo de luxo, e que se vê admirada pelo seu magnífico colo e pelo rico adorno de brilhantes que ostentava, é um acordo, um contrato do nosso país com a sua nação; o sorriso de uma linda boca para um grande funcionário é a garantia de um alto emprego para o protegido. /…/ Em cada noite de São Carlos fazem-se dez contratos co-comerciais, trocam-se vinte juras de amor e oferece-se um quarteirão de colares de perolas. Logo, é necessário e útil».

O espectáculo não se confina à sala, selões ou corredores, sai para o palco e para a rua. O teatro fomentou o diletantismo, fez política, criou modas e lutas. As rivalidades eram acesas, gerando partidarismos, pateadas encomendadas, duscissões, poemas às preferidas, amores… Juntamento com o Chiado, o São Carlos criou um mundo muito seu.

Como o ensino musical em Portugal sempre foi descurado, houve que procurar mestres e cantores além-fronteiras, fazendo assim subir assustadoramente a verba necessária para manter o trabalho em constante actividade. As despesas foram, naturalmente, sempre a maior preocupação  dos empresários. O São Carlos, como os outros teatros, subsiste da venda de bilhetes, uma venda que estava intrinsecamente ligada à capacidade do espaço, à qualidade dos espectáculos e ao preço dos bilhetes. A capacidade variava consoante os empresários dêem mais ou menos conforto. A qualidade fará subir os preços em récitas extraordinárias. Outros artifícios utilizados, foram as lotarias, ou mesmo a exploração da audição de óperas pelo sistema telefónico, em circuito privado.

Houve empresários com êxito, houve falências, mas a historia raramente parou no palco e salas deste Teatro, como se pode observar pela cronologia seguinte:

1792 (8/12) – Inicia-se a contrução da Nova Ópera;

1793 (30/6) – Inaugura-se o Real Theatro de São Carlos;

1796 – É concluido o Salão de Oratórias, hoje Salão Nobre;

1799 – Levantada a interdição às mulheres de pisarem o palco (até ao momento os papeis femininos eram interpretados por “castrattis”);

1817 – Estreia-se Rossini;

1819 – Substituida a iluminação de velas por azeite;

1820 – Suprimidos seis camarotes da última ordem e criadas duas galerias;

1828/34 – Encerra as portas por decisão do rei D. Miguel;

1836 / 79 – Instala-se no Teatro o cenógrafo G. Cinatti;

1843 – Estreia-se Verdi;

1850 – Instalada a iluminaçãio a gáz;

1854 – O Teatro passa a propriedade do Estado Português;

1878 – Foi cortado um metro ao palco, para aumentar o fosso da orquestra;

1879 – Foi cortado 0.80m ao palco, para aumentar o fosso da orquestra;

1880/89 – Instala-se no Teatro o Cenógrafo Manini;

1883 – Estreia-se Wagner. Primeira experiencia com iluminação electrica;

1887 – Instala-se definitivamente a iluminação electrica;

1888 – O edificio contíguo ao Teatro é integrado e aí criadas as infra-estruturas de camarins e salas de ensaio;

1890 – Colocada a «cortina de ferro» anti-fogo;

1894 – Estreia de Puccini;

1897 – O Salão Nobre é remodelado. Desaparece a separação entre a plateia superior e a plateia geral;

1900 – Baixa-se o local da orquestra em um metro e ampliado mais 0,50m por debaixo do palco;

1908 – Decorado o Foyier pelo arquitecto Ventura Terra;

1912 / 20 – Encerra as portas por decisão da República (sendo por vezes ocupado como Biblioteca, como Sala de Esgrima, espectáculos de teatro declamado…);

1927 – Os empresário desistem da ópera em São Carlos;

1928/35 – Período de múltiplas utilizações;

1935 – Encerra as portas por degradação da estrutura;

1938/40 – Grande restauro: alteração da decoração dos átrios e corredores, assim como reconstrução das escadarias com nova estrutura; o fosso da orquestra fica com mais dois metros de altura e de profundidade debaixo do palco; atulhado o poço acustico; alcatifada a sala;

1940 (1/12) – Reinaugurado com a ópera «D. João IV» de Ruy Coelho;

1943 – Comemoração dos 150 anos do Teatro;

1945 – Ultima temporada com empresário;

1946 – Passa a ser dirigido directamente pelo Estado, com um director nomeado (Dr. José de Figueiredo);

1969 – Morre Dr. José de Figueiredo, sucedendo-lhe o Dr. João de Freitas Branco;

1975 – Dr. Freitas Branco é chamado para funções governativas, e sucede-lhe o Eng.João Paes;

1981 – O Teatro passa a Empresa Pública, tendo como Presidente de administração o Dr. Serra Formigal;

Uma história com a participação de grandes figuras das artes, já que se pode dizer que por aqui passaram quase todos as personagens que marcaram o mundo lírico internacional.

Entretanto a sociedade entrou num periodo de reestruturação, o mesmo acontecendo com este teatro. O diletantismo do bel-canto está ultrapassado, a divinização das estrelas é insustentavel económicamente… Num periodo de democratização e de entrada para a Europa, a importação perde terreno perante a exportação e, naturalmente o nacional procura conquistar o seu justo lugar.

Após as primeiras reformas de democratização e reabiulitação da ópera, feita sob a direcção do Dr. Freitas Branco a aprtir de 1981, entrou-se numa nova fase da história do Teatro Nacional de são Carlos.

A profissionalização dos seus quadros, a criação da sua Companhia de òpera Residente, a oportunidade dos artistas nacionais mostrarem os seus dotes, sem a castração à má fila, são já alguns sintomas de mudança.O circo operático dá pois lugar ao espectáculo no palco, à visão da ópera como uma arte de conjunto de multiplas artes. È a reforma vocal que a nova sociedade necessita aprender.

Para apoiar esta nova política, o Teatro está em fase de restauro, tanto a nível de infra-estruturas de apoio, como na recuperação das qualidades acusticas da sala. Na plateia foi ampliada a caixa de ressonância, retirou-se as alcatifas, e se fosse devolvido ao palco cerca de 1 metro, encontrar-se-ia o justo equilibrio sonoro entre a orquestra e os cantores.

Encontrando-se no início de um novo período, é necessário preparar a juventude para saber apreciar esta arte, desintoxicando-a das superperfeições de estudo, ou das acrobacias de especialistas circenses.


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