Tuesday, December 22, 2020

«A Censura e o Salazarismo» por Osvaldo Macedo de sousa (in Diário de Notícias de 2/11/1986)

 «Eu próprio já fui em tempos vítima da censura e confesso-lhe que me magoei, que me irritei, que cheguei a ter pensamentos revolucionários…» (Salazar nas entrevistas com António Ferro -1932/33)

 

O maior perigo para as ditaduras são as ideias que voam, que sonham, que não têm limites no espaço e no tempo, sendo por essa razão, o pensamento «revolucionário» o objectivo fundamental da censura, seja como antecedente, seja como consequente desta.

Naturalmente um dos primeiros actos da revolução de Maio de 1926, foi o controlo prévio da imprensa, como rolha à liberdade de expressão. Passados apenas 39 dias, a 5 de Julho de 1926, sai o Decreto 11.839 que estabelece o regime de censura, logo secundado pelo Decreto 13.465 (18/4/1917) que penaliza «os que propaguem boatos tendenciosos, bem como os que distribuam ou conservem em seu poder, quais quer impressos ou notícias tendenciosas ou de propaganda subversiva».

António de Oliveira Salazar quando chega ao Governo, em 1928, já tem a censura estabelecida, e ele apenas a manterá, e adaptará ao seu gosto, para evitar «pensamentos revolucionários» aos censurados. Ainda sem assumir o poder ditatorial, como Ministro das Finanças, a 19 de Dezembro de 1930, apoia o Decreto (19.140) que controla e obriga os periódicos a publicar as notas oficiosas («A função da imprensa tem um aspecto marcadamente social, que a ninguém é lícito ignorar ou iludir, e que o Governo, cônscio da sua missão, não pode perder de vista. A acção dos Governos carece de publicidade, que nalguns casos tem sido sistematicamente recusada, e isso constitui uma barreira artificiosa e criminosa estabelecida entre o Governo e a Nação»), assim como o Decreto 20.314 (de 16/8/1931) que afasta da Função Pública todos os que demonstrem o espirito de oposição.

Desenhava-se já a estrutura de repressão da Ditadura de Salazar, na perseguição da opinião livre, do pensamento em oposição e da importância do periodismo como veículo transmissor das notícias, que para o regime deviam ser a contra-informação como propaganda e publicidade. Esboçava-se a ambiguidade de um regime pró-fascista, que combatia os fascistas portugueses, de um regime de censura, onde esta era inconstitucional.

Ironicamente, pode-se dizer, no âmbito de conceitos puros, que Salazar foi um «antifascista», ao não aceitar os modelos italianos e alemão, ao perseguir os nossos «camisas azuis» de Rolão Preto, levando-os à prisão e ao exílio: Recusando uma filosofia política aberta, e tipificada, ele opta, como o já tinha feito a própria Revolução de Maio, por uma não definição, pelo jogo do decreto e anti decreto - «A Ditadura para realizar a sua obra tem de ser calma, generosa, um tudo-nada transigente, vagarosa até» (Salazar nas entrevistas com António Ferro -1932/33).

A transigência é afirmar que é «lícito a todos manifestar livremente o seu pensamento por meio da imprensa, independentemente de caução ou censura e sem necessidade de autorização ou habilitação prévia» (Decreto 120.008 de 12/7/1926), sete dias após a  implantação policial da censura; concordar «que a censura é uma instituição defeituosa, injusta, por vezes, sujeita ao livre arbítrio dos censores, às variantes do seu temperamento, às consequências do seu mau humor» (Salazar nas entrevistas com António Ferro -1932/33), ao mesmo tempo que a coloca como «uma questão de decoro e dignidade pública. /…/ A censura hoje, por muito paradoxal que a afirmação lhe pareça, constitui a legitima defesa dos estados livres, independentes, contra a grande desorientação do pensamento moderno, a revolução internacional da desordem» (Salazar nas entrevistas com António Ferro -1932/33).

A questão do nacionalismo / internacionalismo é fundamental no pensamento salazarista. Portugal, na sua educação clerico-feudal de provinciano do interior, é um país ainda não contaminado pela crise do pensamento industrial do homem do século XX. Somos um povo que ainda anda de burro de aldeia para aldeia, lentamente pelos trilhos da serra. A violência da vida moderna, seja como stress, seja em revolta social socialista, em ditadura fascista não se coaduna com a «brandura dos nossos costumes» (Salazar nas entrevistas com António Ferro -1932/33). Internacionalismo +é toda a influencia exterior, comunista ou não, que altere o uso de botas-de-.elástico e «suspensórios de meias». Nacionalismo é a obediência cega aos seus dirigentes, à autoridade, «aquela que pode conduzir, não digo à felicidade do homem, mas à felicidade dos homens». (Salazar nas entrevistas com António Ferro -1932/33).

No próprio dia da publicação da nova Constituição (11/4/1933), onde apenas existe uma clausula dando ao governo o poder de regular as liberdades fundamentais por portarias ou leis, sai um lacónico decreto que estipula: « Artº 1 – É garantida a expressão do pensamento por meio de qualquer publicação gráfica, nos termos da Lei de Imprensa e nos deste decreto.

Artº 2 – Continuam sujeitas a censura prévia as publicações periódicas definidas na lei de imprensa, e bem assim as folhas volantes, folhetos, cartazes e outras publicações, sempre que em qualquer delas se versem assuntos de carácter político ou social.

Artº 3 – A censura terá somente por fim impedir a perversão da opinião pública na sua função de força social e deverá ser exercida por forma a defende-la de todos os factores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum, e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade…

Sendo a Ditadura um regime de honesta legalidade» (Salazar nas entrevistas com António Ferro -1932/33) a função do Poder e da censura não é castigar, mas uma indicação para o jornal, (Directivas dapa a Direcção-Geral de Censura). é uma orientação do «caminho» da Ordem, da Liberdade, em conclusão, da Autoridade - «Autoridade e Liberdade só se contrapõem se ilimitadas ou mal limitadas. Verdadeiramente, porém, são elementos imprescindíveis da Ordem, na acepção elevada do termo, e a Ordem tem por último fundamento a Justiça. Sem Ordem não há autoridade, mas tirania; sem Ordem não há liberdade, mas licença anárquica». (Regime de Habeas Corpus» - Decreto-Lei 35043 de 20/10/1945)

Inimiga da «tirania», a ditadura instrui a censura como infiltração, desinformação, atrofiamento dos canais de propaganda das ideias e notícias. Se mais tarde a opressão ficou mais férrea, no início começou por «corrigir» e «educar». Corrigir, através de um ou outro corte, uma ou outra prisão e degredo…; educar através da asfixia. A Direcção-Geral proíbe os periódicos da oposição a publicar os anúncios oficiais, editais e outras publicações de tribunais; as publicações são obrigadas a enviar ao exame prévio as «provas tipográficas», e não os originais, para fomentar a auto-censura antes de incorrerem nas despesas da composição; criação de sanções para os agentes de venda que comercializarem artigos «suspeitos»… Toda uma técnica de estrangulamento económico, que resulta, como se pode observar pelos números: entre 1933 e 34 os 81 periódicos anti-situacionistas, publicados pelo país, passam para 56; 69 neutros a 43; dos 101 situacionistas a 148. As novas publicações só são autorizadas a simpatizantes do regime.

Os pontos directores da censura visam as «referências desprimorosas, irreverentes às autoridades, notícias de atentados e julgamentos por motivos políticos, crítica sistemática aos actos da ditadura, alusões aos serviços da censura…», toda uma cortina que organiza a ignorância e a propaganda.

O humor, como crítica, é um dos indicadores mais típicos do estado da sociedade e suas liberdades, e assim, durante os últimos anos da década de vinte e princípio do de 30, pode-se publicar «quase» tudo, inclusive caricaturas do ditador e da Dona Censura. Com o finalizar dos anos 30 e princípio de 40 vão desaparecendo as alusões políticas, comentando preferencialmente a política internacional, incentivando o humor declaradamente anti-comunista, ou a sátira social. A caricatura das personalidades desportivas e da cultura (afins ao regime) ganham relevo, substituindo os políticos, assim como a anedota que vai satisfazendo a brejeirice do burguês moralista.

Porém, como vaticinara Salazar, «os verdadeiros pensadores, os que pensam, transpõem, sem ninguém dar por isso – nem eles próprios (?) -, todas as possíveis limitações» (Salazar nas entrevistas com António Ferro -1932/33). Desta forma, o jogo dos segundos sentidos, ou dos cinco, incentivou o humor, a sátira, o pensamento crítico. Se o medo era o domínio público, a ousadia irónica era a liberdade de pensar.

A censura entretanto deixou de ser um controlo do ditador, para ser um processo promocional dos jovens militares, que pelo seu zelo e arbítrio, tentavam agradar aos superiores e ao regime. A mesma notícia podia ser censurada num jornal, e noutro não, consoante o censor.

Ainda em 1971, se afirmava: É lícito a todos os cidadãos utilizar a imprensa de acordo com a função social desta e com o respeito dos direitos de outrem, das exigências da sociedade e dos princípios da moral», mas «a publicação de textos ou imagens na imprensa periódica pode ficar dependente de exame prévio, nos casos em que seja decretado o estado de sítio ou emergência». (Regulamento da Lei de Imprensa – Lei 5-71).

Como estivemos com a emergência de derrubar a ditadura durante quarenta e oito anos, sempre existiu a Censura.


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