Saturday, November 07, 2020
«Stuart recordado em Mateus» por Osvaldo Macedo de Sousa (in JL – Jornal de Artes e Letras de 27/9/1981)
Há vinte anos, em Março de 1961, Lisboa perdeu um dos seus habitantes mais «castiços» e talvezo artista que melhore mais apaixonadamente a amou, compreendeu e retratou. Chama-se José Herculano Torrie Stuart Carvalhais – o Stuart dos «bonecos».
Os anos foram passando e nada, ou muito pouco foi feito para dar a conhecer a dimensão e versatilidade deste extraordinário artista que encantou a pequenada com o «Quim e Manecas» e deliciou os grandes com as suas varinas de perna bem torneada ou as anedotas do fim da tarde.
O «Quim e o Manecas» foram substituídos por outras bandas desenhadas, e os traços daquela silhueta característica de beato ao canto da boca e olhar brejeiro por entre as pálpebras semicerradas vão-se esfumando na memória daqueles que o conheceram.
Ao estudar a obra de Stuart, senti de uma maneira tão forte a injustiça deste esquecimento que me dediquei a escrever uma biografia. Paralelamente, e como forma mais directa de dar a conhecer Stuart e a sua obra, pareceu-me urgente e oportuno, dentro das comemorações do aniversário da sua morte, organizar uma exposição, tanto quanto possível exaustiva, relativamente aos variadíssimos géneros abordados por este artista.
A ideia da exposição teve logo o franco apoio da Fundação da Casa de Mateus (dirigida pelo Eng. Fernando Albuquerque – Morgado de Mateus / Conde de Mangualde e Vila Real), um organismo que tem contribuído notavelmente para a cultura do nosso país através da organização de cursos vários, colóquios, seminários, espectáculos e exposições. Para além do natural interesse que esse projecto despertaria, a exposição foi objecto de especial carinho por parte não só da Fundação da Casa de Mateus mas também da Câmara Municipal de Vila Real, dado que se tratava de homenagear um vila-realense.
«Mãos abertas»
Agrupar um bom número de obras do Stuart para uma exposição não é matéria fácil, já que o «mãos abertas» do Stuart espalhou as suas milhentas obras pelos amigos e conhecidos, ou vendeu-as ao desbarato. Consegui, no entanto a colaboração de vários colecionadores, a quem agradeço e sobretudo a preciosa ajuda do filho do artista, o sr. Raul Stuart Carvalhais. Reunidas as obras e documentos, a exposição foi orientada de maneira a dar ao visitante a imagem dos vários traços, géneros e temas abordados pelo artista – estudos / humor / caricatura / a mulher / teatro / ilustração de livros, revistas e músicas / Lisboa – terminando com um grupo de obras a óleo, pastel, guache, aguarela, «crayon» e tinta-da-china que constitui, em si, a síntese das várias formas de expressão deste artista.
Após vários adiamentos e peripécias, a inauguração foi marcada para o dia 18 de Setembro. Quis o acaso, ou o destino, que as comemorações do 20º aniversário da morte do Stuart ficassem intimamente ligadas ao Congresso da Vinorde, que teve lugar no mesmo local e na mesma data! O vinho, que fez parte integrante da vida de Stuart, continua ligado a ele após a sua morte…
À inauguração assistiram o Secretário de Estado da Integração Europeia, Presidente da Fundação da Casa de Mateus, Presidente da Câmara Municipal de Vila Real, embaixador de Portugal em Bruxelas, embaixador de França em Portugal e o encarregado de Negócios da Roménia.
No dia 2 de Outubro visitarão a exposição o Ministro e o Secretário de Estado da Cultura.
Trabalhar para comer
Falar de Stuart Carvalhais, artista, é falar também de Stuart pessoa. A sua vida foi de uma grande instabilidade, uma sequência de altos e baixos, o mesmo acontecendo na arte. A obra do artista é uma inconstante de qualidade e de géneros: Stuart, o humorista, é também o caricaturista, o cenógrafo, o ilustrador de revistas, livros e capas de música. Stuart foi um pouco de tudo, pois tudo o que lhe desse dinheiro, ele fazia.
Desde cedo que manifestou o seu jeito para o desenho. O primeiro contacto com o profissionalismo foi como aprendiz de pintor de azulejos no estúdio do mestre Jorge Colaço. Em breve os jornais o atraem. O «Século» é o primeiro periódico para onde trabalha. Jornais e revistas serão as sanguessugas do seu génio. A sua vida, a partir desse momento, foi essencialmente o trabalho para a imprensa. Se nos primeiros vinte anos a caricatura política dominou, a partir de 1926, por razões da política nacional, o humorismo (branco) dominará.
Entretanto, a par da caricatura e do humor, Stuart foi abordando outros campos: o desenho para as crianças fascinou-o e nesse trabalho a banda desenhada toma uma grandeza justificada, não só pelo èxito das séries («Quim e Manecas», «Cócó, Reineta e Facada» e outras historias), mas essencialmente por Stuart ser o pioneiro da banda desenhada infantil em Portugal. As capas de música foram outro género abordado pelo artista – estas deram-lhe os únicos prémios internacionais da sua obra. O teatro e a cenografia também quiseram o nosso artista, mas pouco perdurou, já que este trabalho exigia tempo e horários a cumprir. O cartaz, um campo em que quase todos os artistas contemporâneos trabalhavam, também foi feito por Stuart – poucos foram, mas dois deles deram-lhe prémios nacionais. A ilustração de revistas e livros desde sempre o cativou, mas só a faria nos anos 30 e 50.
Stuart, o homem do desenho simples, do traço breve, sempre desejou ser um pintor, um desenhador de obras-primas… «mas ser artista é ter talento, possuir garra, ser condecorado /…/. Eu não, nunca pintei nada /…/, faço bonecos, para distrair a fome /…/. Artistas são os outros/…/» (Stuart Carvalhais in «República» de 13/12/1940). É verdade, desenhava para matar a fome e para isso era mais fácil fazer bonecos para os jornais. Aqui bastava obedecer às leis da censura e ter humor. Humor não faltava a Stuart, com sua irreverencia e apurado sentido de observação do quotidiano; quanto à censura, havia por vezes problemas, mas nada de grave. Na caricatura política ainda houve uma pesquisa estética e até uma linha modernista. No humor, a observação do mundo que o rodeava foi importante, num «país» dominado por uma burguesia e uma mentalidade de quem não se preocupa com mais nada para além do seu bem-estar. Se o traço fácil esboçou essa burguesia, o povo deu-lhe a oportunidade de criar as suas obras-primas. De tempos a tempos, em vez de fazer os bonecos, demorava-se na aguarela, no óleo, na tinta-da-china… para fazer a sua «obra» (paga a uma ninharia ou oferecida, que o Stuart era um «mãos largas»). Aqui Lisboa foi retalhada, retratada nas suas ruas e tipos: a varina, a costureirinha, a prostituta, o chulo, o bêbado, o gato preto, o pobre de pedir, as escadinhas, os becos, as ruelas, tudo ficou registado pela mão de Stuart. O artista soube ler bem fundo na alma do povo, observação e estudo que lhe deram o único prémio oficial da sua vida – o prémio do SNI (1949 - «Domingos Sequeira».
A espontaneidade
Se Stuart retratou Lisboa como ninguém, é porque também a conhecia como ninguém. Stuart nasceu em Vila Real de Trás-os-Montes, mas viveu Lisboa durante toda uma vida. Stuart é o boémio que o notívago encontrava pelas noites de Lisboa. Stuart era o bêbado que o lisboeta encontrava nos bancos de jardim e pelas valetas caído. Stuart era o homem que mandava piropos às mulheres e dava palmadas nos traseiros das varinas e costureiras desta velha cidade.Toda Lisboa conhecia o homem-artista que desde cedo se dedicou è boémia e que se afundou no vício. O álcool foi a fuga de um homem que nunca encontrou confiança em si próprio, que nunca acreditou naquilo que podia fazer. Cada obra era uma nova frustração, já que as suas mãos nunca satisfaziam a sua imaginação.
Stuart não é genial pela sua filosofia artística inovadora, não é conhecido pela sua qualidade de cor e composição. Stuart é um génio porque nunca confiou em si, nunca idealizou personagens, porque as pôs no papel como elas são: desenhou as pessoas com seus amores, ódios, tristezas, alegrias, esperança, abandono, frio, fome; desenhou as pessoas que via por dentro e por fora. Stuart desenhou as pernas mais bonitas, os corpos mais esculturais, as caras mais lindas assim como os corpos disformes pela fome, pelo trabalho, as caras marcadas pelo ódio, desespero, amor gratidão. O artista, quando via algo que o tocava, agarrava no que tivesse à mão, um lápis, um pau de fosforo, tinta, borra de café, pau queimado, morrão de cera, graxa…. E num instante retratava o mundo. Stuart era um espontâneo, não só porque era a sua maneira de captar as expressões, mas também porque o boémio livre de horários e compromissos não deixava que fosse doutro modo. Nada o podia fazer sentir-se preso.
Stuart Carvalhais, apesar de ter sido um artista de preto e branco, não deixou de fazer algumas obras a aguarela e a óleo como já foi dito. Porém, nestas obras não se encontra o tão característico traço «pau de fósforo» à Stuart, nem sempre se encontra o estilo modernista da época, mas encontram-se beleza, espirito e maestria.
Stuart na verdade fez um pouco de tudo e tudo com um pouco do seu génio. Talvez se tivesse ficado em Paris, teria conquistado a fama internacional, mas não, preferiu Lisboa e no final da vida s sua casa de Queluz. Seus últimos anos foram a procura interior do que foi a sua vida. Stuart viria de qualquer modo a morrer à «sua» cidade, viria a morrer em Lisboa, no Hospital de Santa Maria, a 3 de Março de 1961, fez vinte anos.
«A Lisboa dos bairros populares e pitorescos não morre sozinha: morrem com ela os seus cantores e os seus poetas. Podem esses bairros dos arcos, das varinas, dos gatos fugidos à rede municipal, dos candeeiros de chama agonizante, ser substituídos por Areeiros bem feitinhos, pretensiosos, de lustros repuxado e vaga intenção cosmopolita. Mas quem substitui esse poeta da cidade, que foi boémio genial e à cidade, como amante querido, sacrificou a glória da sua arte?» (in Século, 3/3/1961).