Thursday, November 19, 2020
Caricaturas Crónicas - «O CARICATURISTA» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Noticias de 5/5/1985)
«O mundo seria um manicómio; os humoristas apenas uma espécie de loucos, com fracção de juízo, para perceberem que também são loucos, como aliás os outros.» Afrânio Peixoto
O homem tem cinco sentidos para apreender o mundo, mas o caricaturista/humorista tem um sétimo sentido (já que o sexto é especial das mulheres) com o qual vê o mundo numa visão cósmica, superior, e da qual retira a força irónica ou satírica para o seu trabalho.
Claro que também se pode fazer humor ou caricatura/humor através da ordinarice, da pornografia de espírito, mas esse trabalho não provém do sétimo, mas da falta de sentido.
A visão universal do humorista dá-lhe a distanciação necessária aos acontecimentos contemporâneos, na mesma medida que os séculos a dão ao historiador. O humorista para ter essa análise objectiva, essa «fracção de juízo», tem que ser não só um bom técnico, um artista, mas também um sociólogo, um perito de política nacional e internacional, um captador de mentalidades, de espíritos, do Ser. O humorista é o homem que numa síntese nos apresenta a essência da pessoa / objecto / acontecimento de uma forma apreensível e, humorística.
O que é uma
forma humorística para o público? Sebastião Sanhudo em 1880 (25 de Abril), no
seu jornal "O Sorvete» (nº 100, pág. 317), dá-nos um excelente retrato do
«Gosto do público pelos jornais
satyricos»:
«Quando insere caricatura ou artigo sem
alusão pessoal: Hum!... Hoje não tem graça!... Isto está aqui, está a cahir!
Bem podem tratar d' outro ofício que este não rende...» «Quando insere
caricatura e artigos alusivos ao vizinho: Isto sim! Isto é um jornal com pilhéria!
Este rapaz tem habilidade! Gosto muito d' este jornal porque tem muita graça e
não ofende!...».
«Quando insere caricatura ou artigo alusivo a si: - Irra!!! Parece incrível que as leis d' este país consintam que se publiquem papéis d' esta ordem!!! Não haverá um polícia que prenda estes senhores que se divertem à custa do cidadão honrado e inofensivo?!!! Irra!!!»
Não é fácil para o caricaturista/humorista agradar a todo o público, a todas as facções, e mais difícil é ser aceite pelo meio político já que ele faz uma arte de crítica, de opinião que pode ferir profundamente os fanáticos, ou irritar os comodismos. Se o humor é a última coisa que se pode roubar a um povo, a liberdade de opinião é a primeira vítima dos despotismos políticos. Por isso já Raphael Bordallo Pinheiro se revoltava: «Não nos esqueçamos de que a supressão da imprensa às claras autoriza e desenvolve sempre a imprensa às escondidas. A liberdade amordaçada resvala sempre na licença sem pudores e sem balizas; e, quando o demónio quer, vai mesmo até à pornografia mais hedionda».
«A lei da Imprensa é infame. Não coíbe com lealdade, está cheia de alçapões e d' entrelinhas, faculta e premeia a espionagem, quem na fez tem medo da opinião.» (In Pontos nos ii 10/4/1890).
A lei da
Imprensa, ou a «lei das rolhas» é uma das constantes preocupações governamentais
com o desejo de controlar as opiniões e críticos, principalmente o
caricaturista / humorista, já que, como diz Afrânio Peixoto, «o riso é um desafogo, uma revolta, uma vingança
da nossa personalidade constrangida à atenção, à coerência, ao respeito, ao
medo, que nos são impostos por nós mesmos ou por outrem».
Os políticos, homens do Poder, dirigentes têm medo desta crítica porque os desmistifica, humaniza-os, ridiculariza as suas imagens, não perdoa fraquezas, abusos, mentiras, ou falsas promessas.
O caricaturista/humorista vê a vida, os acontecimentos, o mundo através de um prisma cómico, sem perder o respeito pela humanidade, e por ele próprio, apresentando-os de forma a provocar o sorriso ou riso no primeiro tempo, mas provocando ao instante seguinte a reflexão.
Partindo de uma ideia, ele procura aquele pensamento quase imperceptível, aquele gesto de que ninguém tinha notado, mas que sem eles já não era o mesmo. Então, o caricaturista com o seu jogo de linhas, ou palavras, capta o resumo, a síntese da ideia/objecto, ao mesmo tempo que se expressa a si mesmo, já que a caricatura é o encontro de duas assinaturas com a autentificação de uma terceira. Numa caricatura tanto se deve reconhecer o caricaturado, o caricaturista autentificada pelo público que reconhece ambos.
Um indivíduo pode pois ter tantas versões da sua caricatura, quantos caricaturistas a façam, porque o artista original tem tal personalidade que imediatamente se deve reconhecer o seu traço, o seu estilo, o seu espírito de análise - a sua assinatura.
O caricaturista/humorista é pois o operário do riso como labirinto filosófico, do jogo da inteligência para a inteligência, da síntese do mundo. É um homem como os outros, só que com «fracções de juízo» para ver melhor o mundo.