Wednesday, November 18, 2020

HISTÓRIA da Arte DA CARICATURA de Imprensa EM PORTUGAL - No Estado Novo 1933 / 1974 por Osvaldo Macedo de Sousa

"O humorista é, em última análise, o único triunfo certo da filosofia. Os humoristas - os que forem dignos deste nome - constituem na História multi-secular deste mundo, os verdadeiros filósofos."

Luís de Oliveira Guimarães

 

1º PREFÁCIO

Uma bela manhã, há muitos milhares de anos, um caricaturista genial, cujas mãos tinham um verdadeiro poder mágico, pegou num bocado de barro fresco, modelou-o à sua maneira - e fez o homem. Séculos passaram, como pequeninas folhas de um volumoso calendário: outros caricaturistas surgiram, embora sem a auréola sobrenatural do primeiro; e, por mais de uma vez, alguns desses caricaturistas tem-se permitido, com irreverente fantasia, pegar nesse homem, autentica obra-prima de imprevisto e de pitoresco, e procurar restituí-lo, exacto, flagrante, à sua expressão primitiva. No fundo da sua irreverência e do seu sorriso há, decerto, um sentido filosófico que possue o valor de uma lição. Parafraseando o velho conceito «Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris», poderão eles dizer, franzindo gravemente o nariz: - «Lembrem-se, meus amigos, que são barro e que em barro se tornarão». 

Luís de Oliveira Guimarães In "Dize tu Direi eu" Lisboa 1942 (pág. 93) 

2º PREFÁCIO 

Não suponham Vossas Excelências que o humorismo é uma fábrica de estrondosas gargalhadas. Não é, e ainda bem ! A gargalhada é uma manifestação de destrambelhamento dos nervos e, quantas vezes, gargalhadas nervosas traduzem estados de alma bem distantes da alegria e da felicidade.

Quando a alegria atinge a gargalhada aproxima-se da irreflexão, perde o contrôle, o raciocínio, não é fácil de dominar e… quantas vezes, passada a excitação, acalmados os nervos, nós sorrimos da sem razão das nossas gargalhadas.

Quanto mais distinto, ponderado e discreto não é um sorriso !… Há mesmo quem traga permanentemente um sorriso a brincar-lhe nos lábios. São as senhoras que têm uns lindos dentes !

Outras… porque um mafarrico dum dente encavalitado lhes quebrou a linha impecável da dentadura, têm um sorriso menos aberto, aparentemente menos franco e ainda, às vezes, velado pela concha da sua pequenina mão. O que eu pretendo, o que o Humorismo pretende, é apenas fazer-vos sorrir.

O humorismo, embora isso pese a muita gente, embora muitos o ignorem, outros o neguem e muitos outros o esqueçam, é filho das Belas artes, mas filho prodígio (perdoem-me esta vaidade). Respeita os pais, os irmãos, não despreza a sua ascendência que muito o honra, mas exige ser olhado e tratado como filho e não como enteado. Se alguma distinção houvesse a fazer, ela seria em seu favor porque a natureza fadou o humorista com um dom especial, que se não aprende em escola alguma. Pode-se, tendo jeito, cursar a Escola de Belas Artes, arranjar um mestre, estudar enfim, para pintor, para escultor, etc.

Para humorista, para caricaturista, não!

O humorismo nasce com o humorista; não se estuda, não se cursa, não obedece a regras, nem a escolas. É um filho das Belas artes, mas emancipado, livre, garoto, cheio de vida, de espírito, rindo-se dos preconceitos, boémio, mas com um fundo bom. O humorismo é a síntese da vida. Meia dúzia de traços, meia dúzia de palavras. A ciência de dizer tudo, em duas linhas, em dois traços.

Sinteticamente, também Leal da Câmara, nosso velho camarada e amigo, conseguiu representar tudo isso no nosso emblema.

Desenhar e palrar… «por bem».

Mas vamos propriamente ao «Humorismo e a Mulher».

A mulher, em geral, para não dizer na totalidade, detesta o humorismo e sobretudo a caricatura. As razões são facilmente compreensíveis e razoáveis, à primeira vista, mas não resistem a uma análise mais profunda e criteriosa, como vamos ver. Estou mesmo convencido de que ao sair daqui, algumas, senão todas Vossas Excelências, levarão do humorismo uma melhor impressão. /…/ Todas Vossas Excelências, quando tiram uma fotografia ou posam para um pintor de nome, são, em ambos os casos, retratadas o mais lisonjeiramente possível. O artista empregará as mais lindas tintas da sua paleta, os tons mais suaves e harmoniosos para transportar para a tela a vossa beleza e frescura. Procurará fazer realçar todos os vossos encantos. Se, porém, algum pequenino defeito, borbulha ou sinal capilar, existir, ele procurará posição adequada para que tal defeito se não note e não venha empanar a beleza da sua obra. O fotógrafo retocará até que tenham desaparecido todas as asperezas e defeitos.

Tirar-vos-á o buço, se o tiverdes demasiado refilão. Arrancar-vos-á os sinais de cabelo e se, por azar, fordes estrábicas, endireitar-vos-á os olhos. Pois mesmo assim… ainda por vezes não conseguem satisfazer-vos:

O que sucederá com o humorista, com o caricaturista ?

O fim do mundo! Ainda há pouco tempo um caricaturista célebre foi processado e lhe foi pedida uma pesada indemnização por ter exposto a caricaturista da artista Cecil Sorel com um queixo de rabeca e um nariz fenomenal. Aqui vos deixo pois um conselho, camaradas caricaturistas:

Por mais insistências, por mais rogos que vos faça qualquer dama para que vocês lhe façam uma caricatura, não caiam nessa! Fala-lhes uma pessoa experiente . Podem argumentar, e argumentam sempre as senhoras que pedem para que lhes façamos a caricatura, que são espíritos superiores, modernas, desempoeiradas; que apreciam imenso essa modalidade de arte; que quanto mais feias as fizermos mais gostam. Deixai-as falar, mas cautela com esses cantos de sereia! Há sempre uma pontinha de vaidade em todos nós e muito mais nas senhoras. É precisamente essa pontinha de vaidade que, embora escondida da própria dona, se irrita com a caricatura, com o exagero dos defeitos e não mais perdoa.

Tão cegos nos põe, por vezes, essa pequenina parcela de vaidade que nem sequer pensamos que a caricatura celebriza, ou pelo menos arranca da vulgaridade, da banalidade ! Já viram caricaturas de pobres diabos, desconhecidos, apagados, a quem ninguém prega atenção ? Não! Em geral a caricatura pessoal é sempre de alguém que se destaca da craveira, pelo seu espírito, pela sua arte, pelo seu dinheiro, pelos seus pergaminhos, enfim, por qualquer coisa acima da vulgaridade /…/

Sempre que alguém nos elogia e pinta com lindas cores qualquer coisa, é vulgar, ao vê-la, sentirmos uma decepção. Se, pelo contrário, nos disserem mal e fizerem uma descrição desagradável é mais que certo que a acharemos bonita. É precisamente o que se dá com o pintor e o caricaturista. O pintor e o fotógrafo representam o informador optimista. Geram, portanto, desilusões, decepções.

O caricaturista representa o informador pessimista, derrotista. Gera, portanto, impressões agradáveis, reacções benéficas para o modelo. Se alguma reacção desagradável gera é precisamente contra ele próprio por ter induzido em erro. Não há, portanto, quem veja a caricatura de uma senhora, por menos formosa que seja (e não digo feia, porque as senhoras nunca são feias), que, ao ver o original, não exclame: Mas… afinal ela é muito mais engraçadinha que eu supunha. É até bem interessante, bem simpática, bem gentil! E… se virmos bem, até é bonita; E aquele malvado que me enganou com aquela tremenda caricatura! Sempre o sacrificado caricaturista, antipático, maldito por todos.

Eu estou mesmo convencido que aquela canção brasileira, agora muito em voga: «Há uma forti correnti contra você…» deve ter sido dedicada a algum humorista. /…/ 

Leonel Cardoso (Trecho da Conferência "O Humorismo e a Mulher" proferida  a 31 de Maio de 1938, e editada em Livro no mesmo ano)

Introdução 

Com a "revolução" de Maio, muita gente acreditava que a tranquilidade política ia finalmente ser restabelecida. Era a direita Integralista que sonhava ter conquistado o poder; era a esquerda republicana que pensava ter o exército do seu lado; era a esquerda operária que se enganava numa pseudo-conquista da liberdade e igualdade de direitos… Os próprios golpistas estavam incertos quanto ao futuro, estavam divididos. E, se o golpe saiu vitorioso, de imediato seriam os heróis da primeira linha a caírem, como aconteceu com Gomes da Costa, Mendes Cabeçadas…

Como consequência, a ditadura impôs-se, a troco da paz, da tranquilidade, do equilíbrio económico. Para ser mais concreto, os primeiros anos da ditadura foram mais catastróficos, política e economicamente que os tempos da 1ª República.

A caricatura, como reflexo da história, tanto louvaria os políticos, como o Gomes da Costa a arrancar os furúnculos deixados pela República, como em breve se lamentaria dos piores inimigos do espírito humano - a opressão e a censura. A vitória dá alegria, mas não certezas, e as dúvidas são o primeiro sintoma do mau caminho político: « - Ó Maria, afianças a melancia (ditadura) ? - Sei lá, não estou dentro dela… - Então, o melhor é cala-la, que de resto, o calado é o melhor…» (Stuart, in Sempre Fixe de 2/9/1926).

Outra questão que de imediato se colocou, foi uma questão de estilo, já que a Europa de então tinha vários figurinos ditatoriais. A direita portuguesa tinha especial simpatia pelo estilo italiano : « Mussolini - Então é esta a traquinas da sua filha (República) ? O Zé - É sim. Sr. Duce, mas nasceu enfezadinha… Mussolini - Porque não lhe dá o meu xarope fortificante ? O Zé - Deus me livre, já tomou uma xaropada dessas em 1918 e ía morrendo!» (Stuart, in Sempre Fixe de 25/11/1926).

Porém, seja qual for o estilo, qualquer ditadura tem sempre o mesmo fito, calar as ideias, a liberdade - «Na impossibilidade de desenharmos e escrevermos no Diário do Governo, teremos de transformar o Sempre Fixe em Jornal de Modas (F. Valença, in Sempre Fixe de 8/7/1926), através de prepotências e outras potências várias que logo em 1927 põe a Declaração dos Direitos do Homem no Penhor (F. Valença in Sempre Fixe de 5/5/1927) - para no Carnaval de 1933 já se poder festejar as Cinzas dos que nunca estão de acordo por inteiro, os Partidos - Aqui repousam as cinzas dos Partidos Políticos. (F. Valença in Sempre Fixe de 2/3/1933); Lentamente morrem as individualidade, cria-se um estado novo das coisas, em monocromia, de marionetas. Os partidos e as ideologias divergentes com o regime são anuladas pela opressão.

Diversas serão as tentativas de derrubar a Ditadura, com movimentos partindo das próprias forças armadas, mas sempre sem êxito…

O humor teve que aprender a calar, a disfarçar a sua irreverência, o que não foi fácil, nem pacífica, porque sempre que possível, saía um grito do fundo do estômago: «mortos de pé, que os vivos estão de cócoras» (Stuart, in Sempre Fixe). Mas a abnegação também é um característica nacional e com o tempo fomo-nos contentando com a situação - "Onde moras agora ? - Não tenho casa, moro por aí… - Tem graça… sou teu vizinho." (Stuart, in sempre Fixe de 2/4/1942).

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Chefiada por militares, que evitam a todo o custo recorrerem-se de velhos políticos, os primeiros governos serão verdadeiras jangada à deriva entre as várias facções ideológicas, entre os vários interesses em jogo. Os ministros são escolhidos fundamentalmente entre militares e académicos, como acontece logo em Junho de 26, quando o convite para a pasta das Finanças foi enviado para a Universidade de Coimbra, endereçado a um tal  António Oliveira Salazar. Este, perante tal desorganização, acaba por recusar. Mas fica atento, publicando de quando em vez artigos sobre a sua definição de economia ideal para o país, com criticas a atitudes e actuações  dos Ministros das Finanças vigentes… ou seja, preparando o caminho para o seu regresso.

Na realidade, os Ministros de Finanças da Ditadura foram os principais obreiros da criação do mito do Salvador da Pátria. Perante o descalabro das suas políticas, só uma posição radical e forte podia mudar o rumo do país.

A 27 de Abril de 1928, Salazar assume a Pasta das Finanças, iniciando então uma radical reformulação das Finanças Nacionais - "Olha lá, o Ministro das Finanças é de Santa Comba Dão ? - Não, é de Santa Comba Tira…" (Luís Teixeira, in Sempre Fixe de 14/3/1929). A partir de Janeiro de 1930 Salazar acumula as finanças com a Pasta das Colónias.

Em Dezembro de 1930 é ilegalizado o Partido Republicano, e demais partidos, quando está já em formação o partido único União Nacional. A 9 de Outubro de 1931 é criada uma comissão de trabalho, chefiada por Salazar, para a redacção da nova Constituição da República. A 5 de Julho de 1932, António Oliveira Salazar assume a pasta de Presidente do Conselho de Ministros do 8º Governo da Ditadura Militar. A 20 de Agosto Salazar aprova os estatutos da União Nacional. A 23 de Janeiro de 1933 é extinta a Secção de Vigilância Política e Social da Polícia Internacional Portuguesa, sendo criada a Polícia de Defesa Política e Social, para ainda este ano, em Agosto ser criada a Polícia de Vigilância e Defesa do estado (PVDE). A 11 de Abril é promulgada a nova Constituição Portuguesa, ficando desta forma instituído o Estado Novo.

António Oliveira Salazar, assim como a Censura foram os dois elementos mais visíveis desta ditadura Militar, ao longo desta década de trinta. A Censura, como já verificamos no volume anterior, parecia que tinha gozo em ser caricaturada nos suas iconografias satíricas, como a rolha, o lápis azul, a tesoura, a Nª. Srª do Carmo…já que surgiam constantemente na imprensa, sem serem importunadas pelo censor.

Quanto a Salazar também gozará desse privilégio, e hoje, observando o seu percurso político podemos pensar que ele usou a caricatura como forma de ascensão e imposição no governo. Salazar desde 29 era apenas o Ministro das Finanças, mas pertencerá sempre a ele os discursos mais importantes, as iniciativas de organização de estruturas paralelas do regime, as homenagens populares (onde por vezes dividia a popularidade com o Presidente da república), até que o Presidente do conselho se cansou de ser uma figura apagada e pede a demissão, abrindo espaço á ascensão de António Oliveira Salazar a Presidente do Conselho.

Ele soube rodear-se de uma máquina promocional, onde António Ferro terá um papel de destaque no meio jornalístico, e depois na imagem do regime através das Artes, da Cultura.

Na caricatura raras são as referências a outros ministros, ao Presidente do Conselho, ao Presidente da República, enquanto que Salazar, o salvador e o opressor, segundo as visões de cada um, surgirá com regularidade na imprensa.

Se Jorge Barradas desenha em 32, Estamos salvos! Temos homem… (in Sempre Fixe de 30/6); Emmérico Nunes in Acção o apresenta como um dos Capitães da Nação, ao lado de Afonso Henriques, Alvares Pereira, Vasco da Gama (de 1/5/1941), Francisco Valença como um D.Pedro V, um novo dador constitucional (in Sempre Fixe de 9/3/1932)… outras vezes surgirá como a sanguessuga, como o extorquidor (Com a nova partitura, o virtuose das finanças consegue arrancar muitas notas ao velho instrumento (o violoncelo contribuinte). Música de delicia o dilettante (o Tesouro)- in Sempre Fixe de 18/4/1929), como o opressor (quietinho menino ! Se vem fazer barulho, chamo o homem do saco (Salazar), por Teixeira Cabral in 5/1/1933)…

E Salazar dominará a caricatura destes anos, se primeiro com as suas próprias caricaturas, depois com a sua ausência, como testemunho da decadência, do medo, da opressão que dominará não só o país, como o próprio espírito do velho ditador.

Em relação ao período que este volume abarca, depois de resolvidas as questões de apenas começar em 1933, creio que não há polémicas. Naturalmente que poderíamos terminar em 1969, com o início da dita primavera Marcelista, em que o próprio humor renasce um pouco das cinzas, iniciando-se um novo período que triunfa plenamente a 25 de Abril de 1975. Contudo esse período não deixou de ser ditatorial, de ser um epilogo do Estado Novo.


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