Friday, November 20, 2020
«Enrico Caruso: um “cartoonista” que… cantava ópera» por Osvaldo Macedo de Sousa (In revista «Historia» nº58 de Agosto de 1983)
Na «História» nº 54 foi publicado um artigo que nos falava de Enrico Caruso, o cantor de ópera italiano que no princípio do século fascinou os ouvidos do mundo e que ainda hoje persiste através da técnica do disco fonográfico. Nesse artigo, o estilo de cantar de Caruso é dissecado, assim como as suas habilidades «circenses» que ainda hoje predominam em parte do mundo operático. Ao lê-lo, lembrei-me de uma outra faceta deste grande artista, num campo em que foi injustamente esquecido.
Durante séculos, o homem do palco foi despreciado,
assim como a sua arte. É que estes tinham como missão ridicularizar, ou
dramatizar a vida, quer dizer, fazer de espelho deformador perante a sociedade,
para que esta tomasse consciência do mundo. O actor era o diabo que encarnava
os fantasmas da sociedade. Com a evolução das mentalidades, esse desprezo foi
desaparecendo e, em muitos casos transformou-se em divinização. Esta mudança
verificou-se pelo acompanhamento de introdução de «malabarismos circenses» no
palco, em detrimento da interpretação pura.
Quando Caruso chegou è arte cénica vocal, já os
«dandys» criavam, e perseguiam os «divos». Este, com o potencial vocal que
tinha, depressa ascendeu ao Olimpo. Apesar disso, Caruso tinha escrito no seu
destino que deveria pertencer a uma arte depreciada pela sociedade intelectual
e, por isso, foi caricaturista.
Dir-me-ão certamente que isto não é correcto, visto
existirem caricaturistas célebres (também divinizados) e, normalmente estes
serem conhecidos pelos seus contemporâneos, mas não me dizem do rápido
esquecimento a que estão votados. Senão vejamos: quem conhece as obras mestres
de um Leal da Câmara, Celso Hermínio, Jorge Colaço, Jorge Barradas, Stuart
Carvalhais, Francisco Valença?... e isto só para falar de alguns artistas
portugueses pertencentes ao nosso século (XX).
A caricatura, assim como o «cartoon» de humor, é algo
que encontramos nos jornais, os quais, depois de lidos se deitam fora. Por
isso, é natural que os poucos segundos dispensados na leitura do desenho não
deem ao homem/leitor a verdadeira dimensão desta arte. Mas, se a analisarmos
bem, verificamos que é uma das artes mais genuinamente pertencentes a este
século audiovisual. Enquanto artes que provieram de séculos anteriores,
perderam a sua verdadeira função e se fossilizaram no mundo do comércio, outras
nasceram ou recriaram-se para acompanharem a evolução do homem, e destas
poderíamos falar do cinema, do vídeo, das artes gráficas… do humor.
O humor é um dos «humours» existentes no animal
inteligente, que este ainda não conseguiu definir totalmente, mas que o
realizou. Esta realização, encontramo-la manifestada nas artes de todos os séculos,
contudo, seria a partir do século XVI que se manifestaria com maior
individualidade nas artes gráficas. Nesse século e, fruto dos estudos
fisiológicos, a «caricatura» revelar-se-ia em Itália. Da observação realista do
físico humano, a caricatura passou a retratar os feitos e os sentimentos
humanos.
O humor, como já referi anteriormente, foi um elemento
«moralizador» através do Teatro e da Literatura, mas no século XIX, com o
desenvolvimento da Imprensa, seria nesta que a arma humorística teria a sua máxima
força. Assim, nos periódicos o humor e a caricatura começaram a relatar o mundo
e a tentar dirigi-lo. O humorista e o caricaturista são artistas da pena que
também têm de ser repórteres, psicólogos e «futuristas». Mas, a caricatura, o
humor e uma derivação destes, os «comics», não foram só uma arte da politica e
crítica social, mas também uma arma para chamar o leitor, para explicar o mundo
ao analfabeto – em suma, para vender mais jornais.
No ano de 1903 (quase) todos os jornais eram
ilustrados e, se um novo desenhador aparecia no mundo do jornalismo, passava
despercebido. Assim, é natural que nesse ano não tenha sido notado o nascimento
de uma nova «estrela» da ilustração. Era um caricaturista, não daqueles que
desenhavam grotescamente o retrato de um indivíduo exagerando o nariz, ou as
orelhas, ou… Caricaturar é fixar a pessoa sem ela posar, é «apanhar-lhe» os
traços essenciais que dão vida ao corpo, que o caracterizam, que o
individualizam das massas. Caruso era um caricaturista, e «nasceu» em Nova Iorque
a 23 de Novembro de 1903.
Enrico Caruso já era celebre no mundo, como cantor.
Radicara-se nos Estados Unidos da América. Quando 2ª 23 de Novembro de 1903
cantou pela primeira vez a ópera «Rigoleto» no Metropolitan Ópera House,
recebeu uma carta a elogiar sua arte canora e, ao mesmo tempo, a pedir-lhe uma
foto para ilustrar a crítica no jornal «La Folia» (um jornal da comunidade
italiana de Nova Iorque). A resposta foi uma carta de agradecimento pelos
elogios, mas também um pedido de desculpa por não ter a foto requerida. Por
esse motivo, e para poder colmatar esta lacuna, enviava um «croqui» seu, da
ópera «Rigoleto».
Este desenho fascinou o editor, Marziale Sisca e, após
uma aproximação através da amizade e certamente invocando as «raízes» comuns,
consegue que Caruso aceda a colaborar com uma certa periodicidade no «La
Folia». Caruso cumprirá esse compromisso, mesmo quando a sua vida musical o
afastava de Nova Iorque, utilizando para isso correios especiais. Nesta
colaboração, a sua pena não retratou simplesmente o mundo do canto, ou músicos
ligados ao espectáculo de ópera, mas também o mundo da dança, do teatro
declamado, das letras, da pintura… E nem o mundo da política foi esquecido. Em
conclusão, ilustrou o mundo cultural e social do seu tempo.
Mais tarde, também Joseph Pulitzer (um dos patriarcas
e monopolistas do jornalismo norte-americanos) tentou a sua chance junto de
Caruso, pedindo-lhe uma colaboração semanal para a sua cadeia de jornais, em
especial para o «World». Mas Enrico recusou, apesar da verba oferecida pelos
«cartoons» e apesar do preço pago pelo «La Folia» não se poder comparar com o
oferecido. Caruso era assim: não gostava de trair uma lealdade e agradava-lhe
fazer o que lhe dava na gana. Deste modo, nasceu e se desenvolveu um artista que
durante dezoito anos deu a sua colaboração a «La Folia».
Se Enrico Caruso ganhou no seu tempo a glória como
cantor, a sua arte do desenho não lhe ficou atrás, apesar de esta fama se ter
localizado nos USA. Claro que todos os seus amigos conheciam e admiravam a sua
arte no desenho, e o seu humor que tantas vezes lhes obsequiava com a sua
alegria de viver, como através de desenhos que ele espontaneamente fazia em
envelopes, menus e outros papeis que encontrava à mão. O humor era uma constante
do seu carácter.
Para Caruso, a caricatura era uma arte requintada e
aristocrática, já que é o fruto da síntese das formas humanas. Para além disso,
o estilo de Caruso pertence à «linha decorativa» que tem dominado os
caricaturistas de todo o mundo. Este provém do barroquismo das artes gráficas
do final do século passado e brilhou na «Arte Nova», no «Deco» e outros estilos
ligados à ilustração e que ainda hoje subsistem. Apesar deste estilo
predominar, podemos encontrar experiencias que testemunham os vários movimentos
revolucionários que fermentavam nas artes de então.
Voltando ao pensamento de Caruso sobre a caricatura,
será interessante transcrever a resposta que ele deu a Michel Sisca (o filho do
editor) sobre como fazia a caricatura: «Para
mim é muito fácil. A única coisa que deves fazer é seleccionar os traços
predominantes da cara, e trabalhar sobre esses traços e encontramos a
caricatura». Esta é uma análise muito simplista desta arte, porque se assim
fosse, qualquer um podia ser um génio da
caricatura, o que não acontece. Esta definição compreende-se como uma
explicação a uma criança, ou então como a simplificação de uma arte facilitada
por uma mão genial.
Enrico Caruso, como caricaturista, morreria 16 dias
antes da sua morte física, ao terminar a sua obra «Giovanni Grasso, actor».
Morreu o homem e quase morreria o caricaturista, não fosse o filho do seu
editor querer ressuscitar este grande artista, publicando o espólio pertencente
ao jornal «La Folia». Se Caruso mantém a sua celebridade, pela sua voz que
ficou gravada no fonógrafo, também deve reconquista-la no campo da caricatura,
através dos originais que saíram da sua mão.