Thursday, November 19, 2020

Caricaturas Crónicas - «Cecília. O anonimato na caricatura» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 3/3/1985)

Quem é Cecília? O pseudónimo de um artista que ficou anónimo para a história, mas que devido à sua qualidade de traço e à sua maior inteligência satírica, pode ser considerado como o nosso primeiro caricaturista da história da caricatura gráfica portuguesa.

Os primeiros jornais a publicar ilustrações satíricas em Portugal foram… «O Procurador dos Povos», «A Matraca», «O Patriota», «O Torniquete», «Demócrito», «Duende»… jornais onde a violência satírica era grande e onde o anonimato, ou o pseudónimo, os protegia. A nível estético, também a grosseria, a falta de qualidade dominava os jornais. Os nossos artistas desta época não tinham sabido aprender a arte com os mestres que por cá passaram, ou que cá vieram morrer, nem com as gravuras estrangeiras que se editavam em Portugal, muitas das vezes com textos adaptados a assuntos nacionais.

Estes artistas eram quase todos simples operários da gravura, que ilustravam grosseiramente uma legenda, um texto satírico… e, s «e um ou outro se evidenciou, Cecília foi o principal.

Tanto a gravura satírica como o jornal tiveram nascimentos difícil, no nosso país, devido á intolerância espiritual dos nossos dirigentes e, só no princípio do séc. XIX puderam criar raízes estáveis. Só em 1807, aparece em Portugal o jornal ilustrado e, só em 1837, com o «Panorama» se transformou num género jornalístico. Contudo, se o desenvolvimento destes se deve à liberalização do regime, a censura ou a repressão nunca deixaram de pairar no ar.

Contra a repressão, a ditadura, o despotismo fervilha sempre a violência como reacção natural e, contra o cabralismo, não poderia haver outra forma de diálogo jornalístico. As caricaturas desta época são sempre de teor político, anónimas ou assinadas por pseudónimos como Maria, Affonso (que hoje se sabe serem outros pseudónimos do Cecília, ou seja do Lopes “Pinta Monos), Eu, Buffon, Júlio…

A sátira, expressão iconográfica das ideias e da vida, utiliza como primeira arma a Alegoria, construindo com os nomes dos personagens, ou suas actividades, a caricatura ligada a símbolos ou alegorias ligadas à tradição oral de fácil compreensão; como segunda arma, utiliza a metáfora –a metamorfose onomatopaica, ou a metamorfose antropomórfica. Esta utilização da semelhança, ou aliança do homem / nome com os animais ou objectos é uma das mais antigas fórmulas de sátira popular que se pode encontrar nas fábulas e outros contos ancestrais.

Desta forma nasceu, não só a arte do nosso primeiro «artista», como a primeira vedeta da nossa sátira caricatural – O Costa Cabral, o cabralismo e, por simbologia iconográfica, a cabra.

O anonimato, não é uma simples fuga a responsabilidades, no caso da caricatura política, mas uma defesa do caricaturista perante o «mau génio» anti-liberal, a falta de humor do governante. Como missão, o caricaturista ataca a política governamental, defende os interesses do leitor-povo, toma a palavra pela oposição em geral, ou por um sector específico e, como tal, atava o governante em pessoa. A liberdade de imprensa e de pensamento, nunca foram uma constante duradoira no nosso país e, por isso, sempre foi necessário procurar subterfúgios para dizer as verdades que os nossos dirigentes nunca gostam. Um desses subterfúgios mais conseguidos foi, sem dúvida, a sátira na “revista à portuguesa” (género teatral), mas também a caricatura soube sobreviver a esses maus tempos, primeiro, pelo anonimato, depois, pela inteligência.

É no anonimato que eu considero que nasceu a nossa caricatura, tendo como primeiro caricaturista, merecedor desse nome Cecília (litografo conhecido por Lopes Pinta Monos que morreu de tisica em 1853). Normalmente, designa-se Nogueira da Silva como o primeiro, mas na verdade, este é o iniciador de uma segunda fase da nossa caricatura. Denominando o Cecília como o primeiro, podemos datar o «nascimento» da nossa caricatura em 1847, com o aparecimento da sua obra no suplemento burlesco de «O Patriota» (12 de Agosto de 1847). Neste jornal várias foram as assinaturas anonimas que aqui apareceram, mas Cecília evidencia-se entre elas, não só pela qualidade, como pela quantidade de obras assinadas.

Podemos encontrar sua obra no suplemento de «O Patriota» desde 1847 a 1853, com uma periodicidade quase semanal, atacando durante todo este tempo o seu inimigo fidalgal, ou seja o cabralismo. O ser antropomórfico composto de pés de cabra e homem foi o seu meio preferido de identificação e, o assunto principal da crítica o roubo e a manipulação das eleições.

Cecília, e seus companheiros anónimos como ele, foram o primeiro impulso da caricatura, utilizando a violência panfletária na sua crítica política.


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