Monday, November 09, 2020

Cartoonistas /5 – «Vasco de Castro» por Osvaldo Macedo de Sousa (in JL – Jornal de Artes e Letras de 6/2/1985 )

Um artista que nasceu no fascínio pelos humoristas franceses e na atmosfera do surrealismo lisboeta, mas que «cresceu» no exílio, como sobrevivência - «pareceu-me a certa altura a maneira mais prática de sobreviver em Paris. Desenhar em jornais é uma língua universal, escrever em francês é uma chatice, e um português escrever em França…. Bom, foi uma escolha mais ao menos controlada pois tinha esse gosto pelo desenho, pelo humor, pelos jornais». Cresceu aí e criou um estilo original dentro da vanguarda estética e da caricatura. Quando a obrigatoriedade do exílio desapareceu, resolveu regressar apesar de em paris ter já ganho o estatuto de mestre. Porque? «Por ingenuidade».

OMS – Vasco, como te consideras: humorista, cartoonista ou caricaturista?

Vasco – Tudo isto e nada disso. O que eu poderia aceitar ainda seria humorista porque está ligada ao humor, esta que é a primeira virtude do Homem – ter sentido de humor, saber criar humor, saber situar-se com humor. Portanto, a prática do humor é com certeza algo de muito antigo e essencial. Por isso, humorista? Óptimo. Agora cartoonista sim e não, ou sim e sopas.

OMS – Apesar do desprezo intelectual pela comicidade, consideras o humorismo gráfico dentro das artes?

Vasco – Com certeza. Tudo o que seja feito, gravado, inscrito é um fenómeno artístico que pode ser depois classificado como grande, menor, interessante, idiota, genial… Por exemplo, se eu for para uma praia e com o dedo do meu pé fizer uma série de sinais na areia húmida, aquilo é um acto artístico, é uma obra de arte. Mas, segundos depois, vem uma vaga e apaga tudo e isso não impede que a tenhamos feito. Não há duvida que a historia da humanidade tem ultra biliões de actos, fenómenos dos quais não há historia. A Biblioteca de Alexandria tinha a súmula do saber do Oriente e do Ocidente da época e, ao arder desapareceram uma série de Platões, Shakespeares ou Van Goghs dos quais não temos notícia nenhuma.

Acho que devemos dessacralizar ou desengomar os colarinhos da actividade artística, estética, poética… nada está no alto, nada está no baixo, anda tudo em evolução.

OMS – Neste campo quem são os teus artistas preferidos? Algum deles o influenciou?

Vasco – Os meus gostos, os meus autores não são necessariamente redutíveis ao humor, ainda que os tenha. Quer dizer, eu fui tocado em certa altura pelo Goya e por Velasquez, que para mim são grandes humoristas. A “grande” pintura tem também caricatura, deformação da realidade, uma visão risível de olhar a realidade.

Autores? Gosto muito de Camilo Castelo Branco. Ele está sempre a gargalhar, de resto sou incapaz de me conter de rir à gargalhada quando estou a lê-lo. Mesmo quando não quer fazer humor, ele faz caricatura, em sentido estrito. Fala daquelas paixões alagadas, mas com tal distanciação, com tal ironia, com tal olhar, que dá vontade de rir. E não me rio do autor, mas com o autor.

As minhas influências de ordem intelectual são largas. Na minha pratica profissional, sempre gostei muito dos franceses e dos anglo-saxões. Quando era puto gostei muito de Picasso, aliás comecei a gostar de pintura por Picasso, quando ainda andava no liceu. Portanto, já uma educação excessiva e radical das formas. Depois, descobri o desenho humorístico francês do princípio dos anos cinquenta, o Bosc, o Siné…

Quando cheguei a Paris, estava-se na fase da «figuração narrativa», ou seja o Pop francês. Eu acompanhe isso tudo, as primeiras exposições em França de Warhol, do Rauschenberg… quando lá ninguém ia. Tentei introduzir no desenho de imprensa esses dados de ordem gráfica e, tive a pequena chance de, estando totalmente a par do que acontecia na pintura, introduzir esses elementos no desenho de jornal, ultrapassando aquilo que era clássico e académico. Reagia contra o desenho de imprensa de grande nariz, grande dentuça… Achava piada, por exemplo ao Steinberg, pela sua capacidade labiríntica de estilo linear e, ao mesmo tempo, uma convulsão gelada, um grande rigor de desenho, um Kafka cristalizado. É evidente que toda a gente teve que passar por Steinberg a partir dos anos quarenta.

Depois veio aquela subversão do desenho bárbaro, estilo ligado à “arte bruta” do Siné, e depois o “expressivo” anglo-saxónico que é filiado em Picasso. No fundo todos eles vêm de Picasso e Klee.

OMS – Achas que trouxeste alguma coisa de novo ao humor gráfico português?

Vasco – Trouxe-me a mim, e já não é nada mau. Mais do que isso não posso. Agora se isso é novo não sei, quer dizer…. Com certeza que é. Num país onde não há nada, ou praticamente nada existe, não importa quem que venha de qualquer terrinha, seja de uma aldeia, ou de um bairro de Paris, ou Londres, qualquer coisa de novo tráz. O problema é se isso pesa ou não, se isso importa ou não.

OMS – A existência da censura até 1974 influenciou a tua obra? Tens algum desenho censurado?

Vasco – Não porque não estava cá.

OMS – Eça de Queiroz dizia que o humor no constitucionalismo é pelo menos uma opinião. Para ti é uma opinião, ou uma forma de manipulação?

Vasco – è uma opinião. Um opinião própria que normalmente é muito espontânea, muito fresca. Uma das características que talvez tenha a prática profissional do humor é que não é suficientemente recuada como noutro tipo de metodologia profissional. O desenho tem uma carga de esponatneirdade, de visualidade que agrada ver e, não é por acaso que a grande imprensa que a utiliza, privilegia o desenhador. Este tem prestigio, privilégios, um lugar importante. Só cá é que ainda é uma coisa marginal. Eu considero que o público é muito receptivo porque gosta de ver.

OMS – O humor gráfico português tem actualmente alguma característica específica, que o distinga do que se realiza no resto do mundo?

Vasco – Tem a sua chateza, ou a inexistência, escolhe.

Tivemos já épocas soberbas de caricatura, como os anos 70 a 90 do século passado, e depois na primeira República, mas isso é algo escondido, longínquo. O maior desenhador que houve em Portugal foi nessa época: Celso Hermínio. Agora acontece estarmos num dos raros períodos em que não existe um único jornal humorístico.

Há um jornal, como o “Diário de Notícias” que dá uma certa importância ao desenho satírico ou à ilustração de jornal. Podemos considerar que o “Expresso” também o considera com relevo, como um género jornalístico, mas os outros jornais não. Nos outros, é empregue para dar equilíbrios onde há fotos a mais; porque em certas 1questões as fotos já são demasiado conhecidas; porque não há fotos… um pouco para tapar buracos. Não é considerado importante em termos jornalísticos, como vemos nos outros países em que é visto como um género igual ao editorial, à crónica, à entrevista….

OMS – Hoje pode-se dizer tudo o que se quer através do desenho?

Vasco – Tudo não. Porque o desenho tem os limites da folha de papel, do lápis ou da tinta da china, não tem a palavra. A pintura não fala, a pintura é muda, enquanto que o texto fala, tem a palavra, tem construções gramaticais, de lógica, do léxico… é diferente. São dois mundos diferentes, duas galáxias que se tocam. O desenho tem o seu itinerário próprio, a sua pesquisa a nível de formas. Pode ser mais complexa ou mais apolínea, mais perfeita no sentido clássico, ou mais convulsa… mas o desenho é mudo como expressão estética.Não tem a palavra e a legenda é uma colagem, um aditivo.


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