Wednesday, November 04, 2020

Caricaturistas 1 – SAM – Aflige-me este povo e os seus dirigentes que só sorriem às escondidas» por Osvaldo Macedo de sousa (in JL – Jornal de artes e Letras de 11 de Dezembro de 1984)

   Todos os dias, entre as notícias que nos sobressaltam ou que nos informam, encontramos um «arabesco» gráfico que por um minuto «estraga o estuque de cada um com protesto do senhoria» (Raphael Bordallo Pinheiro). Uma pequena ilha de humorismo que nos serve de antídoto à loucura que nos submerge quando saímos à rua.

                O humor não consiste na criação de um mundo totalmente original, mas sim numa nova maneira de ver, uma apresentação diferente daquilo que as pessoas olham mas não vêem, por simples alheamento do que é quotidiano e monótono ou por fuga inconsciente. O humor vem unicamente despertar, obrigar as pessoas a repararem no que se passa à sua volta.

                Como escreveu Ernesto Sampaio, «a sorrir ou a ranger os dentes, o humor destrói a visão convencional do mundo, duvida de todas as definições lapidares, corrige todas as teorias definitivas, é, em suma, contra a esclerose e o imobilismo triunfante, o melhor meio de conquistar e manter na sua forma mais pura a independência e a liberdade.»

                Na série de entrevistas que hoje se inicia, com um questionário comum a todos os entrevistados, o nosso objectivo vai ser o de tentar conhecer os comentaristas-cartoonistas que nos têm traduzido, em desenho, as apreensões, os medos e as ironias de uma sociedade.

                Sam é efectivamente Samuel Torres de Carvalho, um engenheiro civil que conseguiu trazer à superfície o artista que existe em todos eles. É a incarnação da irreverência, do humor nas Artes, do humor na vida.

                Apesar de o conhecermos fundamentalmente como artista gráfico, só 15% dos seus afazeres são ocupados pelo desenho .Ele cria humor em tudo o que toca, seja no desenho, na escultura, na literatura… não por facilidade ou comercialismo, mas por opção por um estilo de irreverência e de comunicação: «Admito que no meu caso tem havido uma grande adesão ao humor que tenho praticado, mas penso que essa aceitação deriva de eu deixar ao público o espaço para a intervenção e participação, espaço para pensar.»

                Como meio de comunicação optou pela criação de «heróis»: «Tudo o que faço, mesmo os objectos, são auto-retratos. Sei que estou sempre a expor-me e talvez devesse ter um certo pudor, mas já estou habituado a andar nu.». Criou personagens que já entraram no estrelado, o Guarda Ricardo e o Chefe («o Guarda Ricardo compoe uma fisionomia, como uma actor teatral que vai representando várias personagens, mantendo contudo a relação de chefe e subordinado»), a Heloisa («uma personagem que vive na realidade sonhada, no meio de uma solidão imensa, e que resolve tudo pela imaginação»), e o Ulysse, que fala francês, e que está destinado a uma série de desenhos animados a fazer na Suécia.

                OMS – Como é que você se considera, humorista, cartoonista ou caricaturista?

                Sam – Tenho dificuldade em integrar-me, em etiquetar-me… O humor deve estar na origem de tudo o que faço. Eu faço caricaturas, não de rostos mas de situações e mesmo de ideias, utilizando a ironia. A vivência intensa do que nos envolve exige uma grande dose de ironia. A ironia mental é uma forma de sobrevivência.

                OMS – Apesar do desprezo intelectual pela comicidade, considera o humorismo gráfico dentro das artes?

                Sam – Não há artes menores, há pessoas e artistas menores. Mas, para muitos intelectuais, a arte tem que ter um A grande, tem que obedecer a padrões que vêm de fora. Quanto a mim, aceitam-me, desde que  não ponha o pé no que eles consideram território deles.

                OMS – Quem são os seus artistas preferidos? Algum deles o influenciou?

                Sam – Um autor que sempre admirei foi Moliére; o outro é Shakespeare. Eles dizem as coisas com a quantidade exacta de matéria, sem necessidade do supérfluo, deixando antever o além das coisas. A nível de influencias, acho que não tenho. Mas, vou-lhe contar uma coisa: eu assinava a revista francesa «Plexus» e no nº 14 vinha um artigo com reproduções de objectos onde a perspectiva estava erradamente exagerada. Era um efeito voluntário que transformava os objectos em algo absurdo. Recebi a revista em 25 de Maio de 1968 e posso dizer que foi uma revelação: fazer humor é algo que existe em nós. É  sobretudo um acto de inteligência. Nesse mesmo dia, fiz o meu primeiro desenho.

             Depois, a minha evolução foi um processo muito intimo. A princípio, os bonecos eram extremamente rudimentares e cresceram como qualquer outro animal. As figuras vão-se formando como se fossem seres que germinam, que vão adquirindo consistência e tendo vida própria. Um processo que é o inverso do normal, já que nos outros artistas o «boneco» costuma nascer um pouco barroco, e com o tempo sintetiza-se, simplifica-se.

                OMS – Acha que trouxe alguma coisa de novo ao humor gráfico português?

                Sam – Se trouxe algo… Talvez aquilo que não havia, uma ironia que existe latente no povo, mas que no humor português aparece com um aspecto de masculinidade, robustez, utilizando a violência nas personagens.

                OMS – A existencia da censura até 1974 influenciou a sua obra? Tem algum desenho censurado?

                Sam – Claro, mas provavelmente de uma forma positiva. A censura fazia parte do combate e, por isso, tive a necessidade de utilizar, como todos os outros, um tipo de exercício, a subtileza, o jogo das escondidas. O meu primeiro álbum é fruto destes exercícios, nele faço o confronto entre a Ordem e a Desordem. Eu poderia ter escolhido os políticos ou os homens influentes e falar deles, mas isso não os afectava, já que as suas posições estavam bem defendidas. Por outro lado, se eu falasse directamente nas dificulades do povo, na miséria, nos preços demasiado altos, a censura caía-me em cima como aconteceu várias vezes, porque isso era a incitação à desordem. A Ordem para o Estado Novo era mais importante que a miséria do povo.

                OMS – Eça de Queiroz dizia que o humor no constitucionalismo é pelo menos uma opinião. Para si é uma opinião, ou uma forma de manipulação?

                Sam – É indiscutivelmente uma opinião.  O humor tende sempre a descobrir as fragilidades das instituições, dos homens e a apresenta-las de forma que os criticados possam tomar consciência. O meu processo é em cada semana recolher, anotar as situações, as frases, as discussões parlamentares ou partidárias. Faço uma selecção dos temas que me parecem menos sólidos e ponho-me à volta deles, procurando descobrir a fenda, as traseiras escondidas e é por aí que vou mexer. Procuro então dar-lhe outro rosto, um rosto de ambiguidade para dar às pessoas a possibilidade de decidirem o seu caminho.

                OMS – O humor gráfico português tem actualmente alguma caracteristica específica, que o distinga do que se realiza no resto do mundo?

                Sam – Aqui não há homogeneidade. É difícil falar de humor português porque todos são diferentes uns dos outros. São casos isolados e nenhum pode ser definido como protótipo de humor português.

                Quanto ao povo. Aflige-me este povo e seus dirigentes que só às escondidas, ou por vua privada, podem sorrir. Aqui, as pessoas estão mais habituadas a chorar do que a rir (mas também é verdade que há mais coisas para chorar). Porém, quando fazem humor são violentos, principalmente na palavra.

                OMS – Hoje pode-se dizer tudo o que se quer através do desenho?

                Sam – Tudo o que se queira. Sempre se pôde. O que difere é a maneira como se diz. O humor pode ser agressivo ou subtil e só ser visto através de uma elaboração mental. Por tudo isto, o humor é imprescindível na comunicação.

                Sam, o Guarda Ricardo, Heloisa, Ulysse seguem a sua vida de arte, crítica e humor, procurando não só que o povo tenha um maior sentido crítico, irónico e não violento, mas essencialmente que os nossos dirigentes percam a máscara da falsa seriedade, que não tenham medo do humor e da sua crítica construtiva, que não tenham vergonha de sorrir.

                Como primeiro passo, o reitor da Universidade de Lisboa e o Ministro da Cultura deveriam dar um exemplo de confiança no humor, autorizando e financiando a colocação do monumento «Ad Ephemeram Gloriam» na Cidade Universitária. Este é um monumento a todos os que esperam a vez de ter uma estátua «um monumento onde todos e cada um podem estar por um minuto, é uma economia num país como o nosso». Um monumento humorístico? Não, uma obra escultorica de Sam com liberdade de imaginação para o público.


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