Tuesday, November 17, 2020
Caricaturas Crónicas - «Farpeando sem sangrar» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 30/12/1984)
Todos os dias ao
lermos os jornais, encontramos dois mundos de leitura: o literário-narrativo e
o visual-ilustrativo. A ilustração (campo visual) e o jornal (como campo literário)
tiveram nascimentos separados, mas ambos com a mesma perspectiva – a
comunicação.
Por ilustração tanto
podemos encarar como a concepção visual do mundo pela grafia, como a
identificação dos poderes da razão humana ligados à educação, à formação e
desenvolvimento do homem. Mas, podemos também ser ambas as coisas – a
representação visual como meio de expressão gráfica intelectual e educativa.
O Século das Luzes ou
da Ilustração, foi o século das grandes mutações europeias, e assim chamado por
ter concretizado a criação de uma nova visão do mundo. Essa foi a revolução
intelectual que abriu caminho à revolução visual do séc. XIX. A nova abertura
do espírito deu passo à nova visão óptica.
A arte, com a
revolução ideológica e industrial, sofreu também uma mutação tanto estética
como técnica, e se as razões se podem buscar no «homem novo», nas descobertas científicas,
também as podemos encontrar no diálogo entre o mundo industrial e o estético,
ou no desenvolvimento das técnicas de impressão. Com a litografia, a
zincografia... a reprodução democratizou a arte e destruiu-lhe a sacralidade,
porque a torna acessível, e porque a destruiu como um todo, dividindo-a em
parte, com vida própria.
Novas razões se podem
encontrar no campo do humorismo e da caricatura, não só pela sua irreverência,
por ter um papel importante como cronista e panfletário, mas também pelo seu
lado precursor de uma nova estética. A caricatura ao renunciar às grandes
composições, ao procurar a linha essencial, a simplicidade, agrafia do mundo,
deu o exemplo das possibilidades das novas técnicas e do novo «espírito»
estético.
Também a fotografia,
como revolução técnica deu o seu contributo. A fotografia nasceu das mãos dos
pintores que investigavam uma nova forma de fixar o que viam. Conseguiram-no. A
máquina fixava o que o homem desejava, mas nem sempre como a idealizava. Isso
levou-o a novas investigações, ao estudo da luz e suas refracções, da
perspectiva… notando então que cada homem criava imagens diferentes do mesmo
assunto e com o mesmo aparelho. É que toda a imagem encarna um modo de ver, e
quando olhamos algo. Estabelecemos uma relação pessoal entre as coisas e nós
mesmos.
Essa particularidade
da imagem é o segredo da arte da ilustração, é o cunho pessoal do artista
gráfico ou fotográfico, independente do estilo e da estética. Através da
«assinatura» traduzem em imagens os acontecimentos do mundo, dando-os aos
leitores como informação, opinião ou manipulação, com graça, humor,
irreverência ou mesmo desespero. As notícias das pequenas coisas, ou dos
grandes acontecimentos, da própria cidade e de países longínquos, são
testemunhados por esta arte de comunicação.
A ilustração é uma
verdade do mundo, mas uma verdade pessoal. Cada criador mostra-nos a sua
verdade como a única, seja como concepção filosófica ou política. Uma verdade
que pode ser manipulável, tanto pelo traço do desenhador, como pelo aparelho do
fotógrafo, mas mesmo assim sem deixar de ser a verdade que o tradutor deseja
enviar para o público. No fundo, a ilustração não é outra coisa que um artigo
de jornal, escrito, não com a palavra mas com a linha, a imagem.
A imagem, teve desde
sempre o privilégio da comunicação, devido às suas características de diálogo
com o público. A imagem dá-nos uma tradução directa do objecto ou do
acontecimento, sem intermediária linguagem simbólica-literária. Pode-se usar
uma simbologia, só que esta é acessível aos mais variados públicos letrados ou iletrados, cultos ou
incultos, uma linguagem simples e imediatista, sem nunca perder de vista o
mundo estético. Sintetizando com uma frase que já se tornou um lugar-comum: uma
simples ilustração diz mais, e mais rapidamente, que um bom artigo de fundo.
O jornal, como
gazeta, nasceu em Portugal em 1641, e após uma história conturbada pela
tolerância ou intolerância do Poder, a qual Alfredo da Cunha designou como
«época antiga», entramos na «época moderna» com a proliferação dos periódicos e
na ilustração no séc. XIX. Estas «Gazetas» eram de cunho literário mas, existem
notícias de que a «Gazeta de Lisboa» utilizou notícias ilustradas em 1716.
Silva Pereira diz que em 1807, o «Armazém Interessante e Recreativo» introduziu
a estampa litográfada nos jornais do nosso país. De todas as formas a gravura,
durante o séc. XIX foi conquistando o seu lugar nos jornais, proporcionando não
só a ilustração de artigos, mas também constituindo um artigo em si. Estas
vão-se impondo, criando publicações de especialidade, destacando-se os de
caricatura.
A caricatura, apesar
de hoje ter perdido uma certa importância e de a maior parte dos jornais só a
utilizar como forma de substituição de uma fotografia que falta, ou como um
grafismo de compensação na composição da página, tem tido em certas épocas e
certos jornais, a sua justa utilização como um dos géneros jornalísticos, que
é.
Ela, para além da
deformação ou exageração, características de base que lhe deu o nome de
baptismo, é o veiculo mais directo ao espírito do leitor e ao ego do
caricaturado. A sua missão não é ferir a individualidade ou ser mesquinho, mas
criticar as fraquezas e as deficiências da sociedade e da política. A
caricatura e o humor são irreverentes, por vezes satíricas, e, acima de tudo,
devem ser uma opinião sobre algo, dito de uma forma risonha, farpeando sem
sangrar, mas com brilho, para que todo o público descubra o que há por debaixo
da pele do lobo, o que existe por detrás do nevoeiro.
O «cartoon», que é
outra forma de caricatura, ou seja a deformação humorística das ideias e das
instituições, tem as mesmas características e fins da caricatura.
A fotografia, que em
parte, eio destronar na ilustração o
desenho e a caricatura, pode ser um simples espelho dos acontecimentos, como uma
interpretação dos factos, seja pela legenda, como pelas perspectiva favoráveis
ou deformadoras, temas escolhidos, pelas montagens, pelo humor que encarnem.
A ilustração, como
qualquer outro género jornalístico, pode ser um simples testemunho ou uma obra
de arte, dependendo não das suas características intrínsecas, mas do génio do
autor, aliás como em todas as artes.