Friday, November 20, 2020

Caricaturas Crónicas - «Amarelhe - O Teatro na Caricatura» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 24/3/1985)

No novo Museu do Teatro, Amarelhe – o caricaturista da gente de teatro, encontrou finalmente a sua casa, o Museu adequado para a sua obra, já que toda a sua vida foi dedicada ao teatro, fixar em traços caricaturais, as «máscaras» dessa gente que vive para criar, ou reviver, no palco a vida dramática, trágica ou cómica do nosso mundo.

A relação entre o teatro e a caricatura perde-se no tempo, e o próprio símbolo iconográfico desta arte é já um exemplo de caricatura: duas máscaras (exageradas) caricaturais que representam a estilização da dualidade da vida – a comédia e a tragédia.

A máscara de suma impotência no teatro, é algo que é explorada por todos os povos, seja nos considerados primitivos, seja nos «civilizados»; seja em representações iniciáticas, seja na dramaturgia e até no quotidiano. Estas máscaras, construídas com um profundo cunho caricatural (na sua essência), tem não só uma missão iniciática, religiosa… mas também de instrumento de poder, de terror, de conjuração ou de expiação. A máscara é um esforço para dominar o Cosmos, uma tentativa de poder.

O sentido caricatural desta máscara não o humor clássico contra a sociedade e seus erros mas, fundamentalmente, contra o mundo da natureza que o rodeia, que o tenta oprimir, dominar, e que lhe mete medo. A máscara é então um meio de vencer a vida e a morte.

Por todos estes motivos, a máscara perdurou através das civilizações, perdendo, porém, o poder de encarnar os deuses e demónios no homem, de lhe dar suas forças, não perdendo contudo o poder de exorcismo, que ainda perdura inconscientemente, seja nos chamados Carnavais, nas festas dos equinócios, ou nas festas populares, acompanhadas agora com um cunho mais cómico de libertação, de quebra de tabus da nova ordem social.

No campo do teatro (seja europeu, africano ou oriental) a máscara tem a função de síntese exagerada da personagem, é a concentração de certas características que nos dão a «caricatura tipo».

O caricaturista francês Grandville levou o sentido da máscara a uma expressão mais profunda, quando escreveu: «Põe a tua máscara e eu te direi quem tu és. A máscara foi dada ao homem para dar a conhecer o seu pensamento». Amarelhe, se nunca escreveu isto, interpretou através da sua arte, este pensamento.

Amarelhe, de seu nome Américo da Silva Amarelhe (de pai galego Amarelle), é um portuense que nasceu em 1892 e que desde muito jovem se dedicou à caricatura. A sua formação artística é fundamentalmente de cunho autodidacta, aprendendo através do que via nos jornais, aprendendo  com mestres como Raphael Bordallo Pinheiro, Leal da Câmara, Jorge Colaço… que dominavam os jornais de então.

Fez a sua primeira exposição na cidade do Porto, tendo ainda 14 anos. Já aí a sua arte caricatural foi reconhecida e incentivada, lançando-opara o desejo de profissionalismo. Por essa razão, em 1912 já o encontramos em Lisboa, incorporando-se no movimento humorista de exposições, que foram, em parte, responsáveis pela introdução do modernismo em Portugal.

Amarelhe teve mesmo uma presença marcante nestes primeiros Salões de Humoristas, não por questões estéticas, mas pelo número de obras apresentadas. No âmbito estético, a sua arte não estava no rango dos «vanguardistas» do movimento modernista, como estavam Christiano Cruz, Almada Negreiros, Emmérico Nunes…

O estilo de Amarelhe, com origem no rafaelismo, soube libertar-se do «barroquismo» dessa escola, mas não da sua tendência naturalista (apesar de, sempre que possível, em obras que não se destinavam à imprensa, explorar novos caminhos). Evitando e exageração agressiva, a exploração de irregularidades anatómicas desnecessárias, ele foi essencialmente um retratista de síntese. O retrato, para ele, não é o reflexo de uma imagem pelo espelho deformante, mas a «máscara» onde só aparecem os traços dominantes, a força da personalidade, o pensamento do retratado. Amarelhe, aliando a graça com o traço síntese, preocupa-se sempre numa busca da semelhança e da diferenciação – a semelhança física e a diferença psicológica.

A caricatura portuguesa nasceu com a sátira política e sempre tem vivido dela e com ela mas, Amarelhe foi uma das excepções, já que a sua caricatura não é de cunho satírico, mas de testemunho (divertido) de máscaras, de personagens. Sem qualquer interesse pelo que hoje se denomina por cartoonismo (apesar de ter feito charges politicas para sobreviver em alguns periódicos), ele é o artista do «portrait-charge».

Colaborador dos principais periódicos portugueses, desde muito cedo o seu interesse temático se dirigiu para o teatro, industrializando a sua arte no testemunho desse mundo de fascínio, de aparências. Por isso, hoje podemos descobrir várias gerações de artistas fixados pelo seu lápis caricatural.

Mas o teatro seria ainda mais dominante e, a sua carreira artística não se limitaria à caricatura, trabalhando como cenógrafo e decorador de telões, cartazes, painéis (quase todos eles não assinados e portanto sem testemunho para o futuro)…

A sua obra foi extensa, com múltiplas exposições, mas o mesmo não se poderá dizer da sua vida, já que morreu em 1947, com 55 anos de idade. Nesse mesmo ano realizou-se a sua ultima exposição (póstuma).


Comments: Post a Comment



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?