Saturday, November 21, 2020

Caricaturas Crónicas - «Amadeu de Souza-Cardoso, as suas origens e a caricatura» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 2/6/1985)

Considera-se normalmente a primeira fase, as origens de um artista, como pertencente ao mundo «anedótico» das biografias. Só que nem sempre assim se pode encarar e, em Portugal, entre os modernistas, as origens são um período de especial interesse, como foi o caso de Almada Negreiros, Jorge Barradas, António Soares, Carlos Botelho…. Amadeu de Souza-Cardoso. Estas origens, que se individualizam na obra geral, estão ligadas à caricatura, não por uma pseudo facilidade artística mas, porque como dizia Leal da Câmara «a caricatura ia na vanguarda».

Amadeu de Sousa Cardoso é um transmontano nascido em Amarante a 14 de Novembro de 1887. Filho da alta burguesia transmontana, teve uma educação esmerada, e quando chegou o «tempo», optou pelo estudo da Arquitectura. Um ano em Coimbra e outro em Lisboa, bastaram para o convencer da nulidade do ensino neste país. A alternativa consistia pois procurar nova profissão, ou prossegui-la noutro país.

Paris, a «cidade de sonho», onde a boémia, o prazer, o dinheiro e as artes dominavam, foi o lugar eleito por Amadeu (1906), uma escolha igual à de tantos outros artistas do mundo inteiro.

Apesar de a Arquitectura ter sido a opção oficial para um curso académico, já há algum tempo que a sua mão procurava outras formas de expressão, procurava a linha, a linguagem do traço, a caricatura como síntese da expressão. Um estudo iniciado em Portugal, prosseguido em Paris, mas sempre com o apoio conselheiro do seu grande amigo e poeta Manuel Laranjeira: «Eu compreendo porque você tem falhado todas as vezes que tenta caricaturar-me, meu amigo, e vou dizer-lho. É porque você ainda está na idade em que se não ri das coisas tristes, você toma-se muito a sério, e quando tenta caricaturar-me, o lado sombrio da criatura que se estorce dolorosamente em si mesma” avulta no seu espírito; e você, que não sabe nem pode rir-se de uma coisa assim, falha – tem de falhar. Eu, se soubesse desenhar como você, creio que fazia a minha caricatura em dois traços singelos e estou certo que o faria profundamente grotesco e doloroso». (Carta datada de Espinho 24 de Abril de 1906).

«Esplêndido, repito: você está de dia para dia adquirindo mais vigor e sobretudo mais sobriedade no desenho. É de resto uma evolução natural, que eu previ quando há dois anos, mal você balbuciava a linguagem das linhas, o aconselhei a desenhar, a desenhar, a desenhar muito, a desenhar sempre. Para entrar na posse plena de uma língua é preciso falá-la, falá-la sempre, sem desânimos, sem cansaços, obstinadamente. O desenho é uma língua também com uma estrutura própria que se adquire trabalhando, trabalhando infatigavelmente». (Carta datada de Espinho 23 de Outubro de 1907).

Amadeu partiu para as artes como que numa luta pelo domínio da linguagem gráfica, procurando não só o domínio técnico mas também da vida, trabalhando tanto a «mimese» naturalista como o retrato profundo, e por vezes grotesco que é a caricatura.

Não são muitas as obras humorísticas ou caricaturais de Amadeu, mas das poucas que se conservaram denota-se uma evolução (a tal que Laranjeira testemunha), um crescer de exteriorizações estéticas, conseguindo autenticas pequenas obras-primas da caricatura.

Denotam-se influências, para além dos conselhos de Laranjeira? Bem, em Portugal naquela altura ainda o naturalismo pictórico era rei e senhor e, na caricatura, a escola rafaelista (ou bordalliana) dominava, mas já tinham havido algumas dissidências como Leal da Câmara ou Celso Hermínio. Estes tiveram certamente influência no traço caricatural de Amadeu. As suas obras são como que uma fronteira entre essas «ilhas» gráficas do mar rafaelista, e a futura onde do modernismo dos anos dez.

Quando os anos dez chegaram, já Amadeu de Souza Cardoso estava longe da caricatura, tinha partido para novos mundos gráficos, talvez um pouco exóticos segundo alguns, e que no fundo são fruto daquela filosofia de trabalho impulsionada pelo amigo poeta, e que o levou, de 1906 a 1911, à busca das formas, conquistando assim o seu lugar na revolução estética do nosso século.

A partir de 1912, com a complementação pela cor, Amadeu precipita-se na «conquista da arte», a febre da pesquisa domina-o. A revolução está na destruição das escolas, e ele ultrapassa-as: «/…/ as escolas estão mortas. Nós, os jovens, procuramos a originalidade. Eu sou impressionista, futurista, abstracionista, de tudo um pouco». (1916, in entrevista no Primeiro de Janeiro). Procurará a modernidade de Baudelaire: «La modernité c’est le transitoire, le fugitif, le contingente, la moitie de l’art, dont l’autre moitié est l’eternel et l’immuable». Trabalhará todas as correntes estéticas do seu tempo, dará o seu contributo e abandoná-las-á. Teve a necessidade de tudo fizer nos seis anos de vida que lhe restavam. Mostrou o seu valor, mas não o pôde desenvolver, pois viria a morrer a 27 de Outubro de 1918 (com a pneumónica - pandemia da gripe espanhola)


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