Wednesday, November 18, 2020
«20 anos depois da sua morte – Stuart Carvalhais o “desenhador de bonecos”» por Osvaldo Macedo de Sousa (in revista “Historia” de Março 1981)
Vinte anos de esquecimento se passaram sobre a morte de Stuart Carvalhais e já poucos são os que se lembram dele. José Herculano Stuart Torrie de Almeida Carvalhais, foi um humorista transmontano que viveu Lisboa. O Stuart – como era conhecido – nasceu em Vila Real de Trás-os-Montes a 7 de Março de 1887. Seus avós eram a proprietários rurais do Alto Douro e, por via materna, tinha ascendência numa família da alta nobreza escocesa – os Stuart Torrie. Seu pai, apesar de ter cursado engenharia agronómica, não quis fixar raízes, preferindo deambular de terra em terra e de profissão em profissão. Poucos meses após o nascimento de José Herculano, muda-se para Zalamea-la-Real (Espanha), seguindo depois para Alenquer, Montemor-o-Novo, Lisboa… e com ele deambulará o jovem Stuart.
Em 1901, Stuart encontra-se já em Lisboa, onde frequenta várias escolas, completando assim a sua educação, iniciada em casa, com professores particulares, à qual se tinham seguido dois anos no Liceu de Évora. Até que nível chegaram os seus estudos é impossível precisar. Por volta de 1905 entre para o estúdio do mestre Jorge Colaço, onde inicia a sua aprendizagem artística como pintor de azulejos, podendo ao mesmo tempo seguir a criação artística de caricaturista e de ilustrador do mestre. Jorge Colaço não só lhe abriu perspectivas estilísticas e conceptuais no campo da caricatura, como também o lançaria nos jornais.
A partir de 1906, começam a aparecer trabalhos de Stuart no «Suplemento Cómico de “o Século”». Será aqui, e nestes primeiros tempos, que ele abrirá novas perspectiva em Portugal na banda desenhada para crianças. Após várias experiências de interesse entre 1909 e 1911, será de 1914 a 1922, e depois menos intensamente, mas com o mesmo interesse, que, com as historias do «Quim e Manecas», «Manecas e João Manuel», «Cocó, Reineta e Facada» e outras historias, Stuart imporá a historia ilustrada para crianças na imprensa diária ou semanal. Stuart não foi só um introdutor, mas um inovador técnico.
A partir de 1911, Portugal vive um intenso movimento artístico – a introdução do modernismo. Stuart, está na primeira linha da vanguarda e, como português, Paris era o seu sonho… Em 1913, de maneira imprevista (como era o próprio Stuart), encontramo-lo perdido entre a massa de artistas de Montmartre.
Foi para Paris como um artista desconhecido, e regressa passado uma ano como cartoonista famoso. Em poucos meses, Stuart conseguirá vencer o difícil meio parisiense, mas, como a estabilidade, o compromisso e as responsabilidades o incomodavam, acaba por recusar a fama internacional e fugir a um processo judicial por quebra de contrato de exclusividade com um dos maiores jornais humorísticos da época, o «Ruy Blas», onde chegou a ser um dos principais artistas.
Regressou definitivamente a Lisboa. Mal chegou e, também de um modo imprevisto, casou-se e tem um filho – Raul. Um casamento desigual (com uma varina) e estranho (deve ter sido por a engravidar).
Stuart regressou para a mediocridade do seu país. De Paris trouxera a saudade pela cidade da luz, a frustração por ter virado costas ao sucesso, a revolta contra si próprio. Tinha perdido a oportunidade e as condições de ‘criar» ao seu nível, de ganhar confiança em si mesmo. Tinha recusado a ocasião de ser o artista que sonhara ser. Em Portugal, a desilusão, a precariedade, a falta de oportunidades, a necessidade de sobrevivências aliadas ao vício crescente do álcool e as mulheres fizeram com que o sonho se tornasse irrealizável e, Stuart, «não passou de um desenhador de bonecos».
A vida de Stuart nos anos 20, 30, 40 e 50, transformaram-se na fuga à família e às responsabilidades, na fuga de si próprio. Foram a frustração, a boémia e o excesso de trabalho para os jornais, como caricaturista e cartoonista de gags; para livros, revistas e partituras de música como ilustrador; como cartazista; como cenógrafo e figurinista para o “teatro de revista”; como decorador para a Feira Popular… Este trabalho será galardoado com vários prémios internacionais e um do SNI, o que não impediu que a insatisfação fosse o sentimento dominante dele e que os críticos e historiadores de arte se esquecessem da sua obra. Stuart viria a morrer com um ataque cardíaco no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, a 3 de Março de 1961. Faz agora 20 anos.
O que terá tornado Stuart num artista a não esquecer?
Talvez que, ao ser lido o que atrás foi dito, se pense que nada fez e que muito poderia ter feito. Talvez esse pensamento esteja correcto, principalmente depois de se conhecerem as suas potencialidades desaproveitadas, o seu génio, do qual ele nos deixou apenas uma sombra.
«Stuart tinha demasiado lá dentro», diz-nos (o pintor alemão Hein) Semke e, esta frase, leva-nos a descobrir o mundo interior de Stuart. Tinha imensas potencialidades, frustradas por um espírito sem a mínima confiança em si, sem equilíbrio organizativo e por um mundo artístico para o qual não estava preparado (para este pensamento anárquico). O meio das artes em Portugal, dominado pela concorrência, pela mesquinhez de cada um por si, pelo mal-estar (subterrâneo) entre os artistas (que só pensavam em sobreviver), era-lhe adverso. Stuart, o mãos-largas, o homem que nunca se zangou com amigos, sempre pronto a ajudar toda a gente, não se sentia bem no meio artístico mais requintado, apenas no boémio.
A sua vida familiar foi também uma frustração, já que o seu espírito, nada tinha de comum com o dos seus pais (rurais aristocráticos) nem com o da sua mulher (analfabeta do povo). Os amigos, eram muitos ao balcão da taberna, mas raros no seu coração. Stuart, para além da falta de confiança, (e apesar do estimulo de uma mão cheia de mecenas que lhe adquiram muitas obras) não sentia o estímulo, nem o apoio necessário para uma obra consistente. O seu pior inimigo sempre foi ele próprio, e, em breve, foi-se afundando no álcool, de onde foi quase impossível tirá-lo.
Como se poderá falar das suas potencialidades, se aparentemente o que fez, foi nulo? Teremos de destrinçar, de entre as milhentas obras de ocasião, ou com o simples intuito de ganhar dinheiro, as obras de grande qualidade, as profundamente inspiradas – e que não são poucas.
Após um período de “tendência” modernista, em que foi director de jornais de vanguarda humorística, como «A Sátira» e «ABC a Rir», sofre um certo retrocesso estilístico, para se concentrar na pesquisa de um traço novo, inconfundível, no qual vem a «retratar» a Lisboa antiga e o seu povo. Foi nesse traço, tão característico, que ficaram gravadas para sempre as belas pernas das varinas, das costureirinhas, das bonitas raparigas, assim como os bêbados, os gatos matreiros, os «cães vadios» e suas prostitutas, os ardinas – enfim, Lisboa. Stuart fixou para sempre a cidade antiga que ia desaparecendo para dar lugar à Lisboa «cosmopolita» dos nossos dias. Ninguém como ele soube conhecer e retratar através do desenho, a cidade e o seu povo.
Desperdiçou-se (em parte felizmente) no «boneco» para o jornal diário, gastou-se na comicidade do dia-a-dia, no desenho de improviso mas, mesmo essa obra deverá ser reconhecida no seu valor de análise psicológico e social. Stuart não foi um pintor grande de telas - como em parte gostaria de ter sido -, nem de encomendas oficiais. Não foi um pintor ao serviço da burguesia, nem um artista da cor. Ele foi essencialmente o mestre do preto e branco, o branco da folha de papel e, o preto da tinta-da.china, do lápis, do carvão, di pau-de-fósforo, da borra do café, da cinza, da graxa….
A sua obra merece um outro tratamento, não o esqueçamos!
Será mesmo que faz 20 anos que Stuart Carvalhais «morreu»?...
(PS: em Setembro desse ano, realizei no Solar de Mateus em Vila Real, a primeira exposição retrospectiva da sua obra – “Stuart - 20 anos após a sua morte” com edição de catálogo e em 1987, nessa mesma cidade com nova exposição retrospectiva lancei o álbum «Crónicas d’um Stuart», edição D. Quixote).