Sunday, October 25, 2020

«O Humor, uma moda da sociedade actual?» Por Osvaldo Macedo de Sousa (in «Tempo» de 5/1/1989)

O humor é algo de todos os tempos, já que se manifesta consciente ou inconscientemente desde que o homem tomou consciência dos seus actos. Porém, de repente, uma série de investigadores começaram a defender publicamente que estamos numa época em que o humor é moda, um elemento orientador da vivência da sociedade actual.

Veja-se o livro «A Era do Vazio» de Gilles Lipovitsky, ou os artigos da «Times» em Setembro, do «Cambio 16» em Outubro, do «Jornal» em Novembro… em que o humor mereceu capa e artigo de fundo. Nesses artigos, principalmente os espanhóis traziam algumas informações curiosas, como a existência, em paris, de uma Associação para a Promoção do Humor nos assuntos Internacionais (APHIA), com a atribuição regular de um Prémio Nobel de Humor. Esta associação está na linha do espirito do diplomata colombiano Juan Gustavo Cabo-Bordo, quando este defende que «quiçá a verdadeira tarefa dos adidos culturais seja fomentar o riso entre os diversos países». Será por essa razão que nos Estados Unidos da América o humor transformou-se numa necessidade premente da sociedade, com a incrementação de escolas e universidades para criar humoristas diplomados?

Outro aspecto interessante destes artigos verifica-se no plano bibliográfico referenciado no universo anglófono. Segundo os dados apresentados, à uns 20 anos haveria pouco mais de uma centena de títulos disponíveis, enquanto em 1977 já ultrapassavam um milhar e hoje dá para encher uma centena de paginas impressas. Na verdade, nunca se estudou tanto teoricamente o humor como hoje e, ao mesmo tempo, se sentiu tanta dificuldade em fazer um bom humor.

Josema Juste, um humorista espanhol, a trabalhar em bares e cabarés apresenta-se como um psicanalista, que faz «terapia de grupo com consumo mínimo». Isto está dentro do âmbito da fórmula matemática que define: «O prazer da anedota é directamente proporcional à disposição negativa contra o agente-objecto da mofa e inversamente proporcional ao agente promotor da mofa».

Rir é a melhor forma de descarregar os fantasmas, as opressões ou agressões, tornando-se um antidoto, um antibiótico contra os políticos, os (des)governos, a vida. Já na Antiguidade se defendia médicos do homem eram o Dr. Alegria, o Dr. Repouso e o Dr. Dieta, razão pela qual os humoristas deveriam ser pagos pela previdência Social e os Salões de Humor e caricatura subvencionados pelo Ministério da saúde.

Milan Kundera acrescenta que «a ironia e o humor são as formas mais elevadas da sabedoria», porque é através destes que o ser humano toma total conhecimento de si próprio e do mundo que o rodeia. O Ser só encontra paz e conhecimento quando se sabe ver ao espelho da realidade, sabe rir-se de si próprio, sabe rir dos (com) outros como seu reflexo.

Quem normalmente não tem esta «sabedoria» (infelizmente para eles e todos nós) é o poder, os políticos, a igreja (os homens das religiões), os militares, ou seja, as instituições (indivíduos) que se querem levar muito a sério e procuram, por uma ditadura moral, legislativa, comportamental, obrigar os outros a considerarem-se «sérios». Raros são os políticos com sentido de humor, amantes do humor, principalmente quando estão no Governo (sendo por vezes o oposto na oposição), o que é uma nítida falta de segurança perante as suas acções, perante a sua política e a sua imagem pública.

Porém, como afirmou João Chagas «não há homem verdadeiramente célebre se dele se não contarem, pelo menos, seis ou sete anedotas». Só quem sai da mediania, quem se distingue da multidão (pela positiva ou pela negativa) chama a atenção do humorista e pode ser reconhecido perlo público «leitor» da mensagem satírica, irónica ou humorística.

Pelo seu lado, o humorista-caricaturista «e um soldado que parte em guerra com a esperança de ganhar. Ele denuncia, desmistifica, desmascara ou penetra as “panças” dos Políticos» (Claude Roy). Ele é o porta-voz das injustiças, um louco dentro deste manicómio, que é a vida, «com fracções de juízo, para perceber que ele é louco, como aliás os outros». (Afrânio Peixoto)

Houve tempos em que o humor era uma festa colectiva, um carnaval (tempos em que a vida eram dois dias e o carnaval mais de 3 e não politicamente correcto) que jogava com a profanação, a  violação das regras oficiais, rebaixando o sublime até ao grotesco, numa transposição simbolica e catartica. Depois tentou-se expurgar os elementos escatológicos (que os anos de humor absurdo de sessenta tentaram recuperar), as profanações materiais, para incrementar o jogo do espírito. O simbólico transforma-se em crítico, em prazer subjectivo. O colectivo passa a individual, a liberdade a obscenidade. O que era natural, como elemento subversivo de renovação social, passa a ser apresentado como antinatural, desprezível, obsceno para a «boa» sociedade.

Actualmente a «boa» e «má» sociedade foram quebradas por uma nova forma de estar, despreocupada, sem pretensões na vida, como o é a sociedade pós-moderna. A irreverencia deixou de se panfletária (e quando é, castram-ma com actos de terrorismo, prisão, perseguição…), a sátira perdeu a força perante a espectacularização da política, o grotesco não tem contraponto ao banalizar-se ao desaparecimento do sublime. A filosofia dominante procura ser o «non-sense», a incongruência frívola, rodeada pelo estilo cómico da publicidade, da moda, dos costumes.

O «humor», nesta sociedade politicamente corecta, deixou de representar o risível, para ser uma forma de estar em sociedade da era do vazio. O riso provocador deixou de se ouvir, sufocado pelo ruido das cidades, para dar lugar a uma vacuidade falsamente preenchida por um narcisismo incongruente. Entretanto, o dito processo humorístico investe nas velhas estruturas da tradição, da ordem, dos valores superiores da sociedade, transformando-os em grotescos, como a castidade, a poupança, autoridade, educação, ética, consciência profissional, sacrifício… Até o traje perde o seu lado disciplinar, para investir na paródia, na antimoda, no grotesco. Quanto às artes à muito que jogam no cómico, no burlesco, no humorismo como expressões da vanguarda.

A própria política, onde os indivíduos se consideram muito sérios, optou por uma linha humorística do espectáculo, uma comédia dell’Arte onde o «carnaval» americano dá o tom, ou por uma linha picaresca em que a oposição entre os partidos não passa na maior parte das vezes de uma farsa eleitoralista.

Destarte, o humor, a sátira, a ironia continuam a existir, como uma necessidade cada vez mais premente em sociedades em luta pela sua voz, como as sul-americanas, médio-oriente, leste…

EM PORTUGAL?

Apesar de politica económica e socialmente sermos terceiro-mundistas, já somos, por estatuto, europeus. Isso quer dizer que ainda não atingimos em pleno as condições de uma sociedade pós-modernista ou «humorística».

O poder continua a ser «sério». Mesmo quando há crise ou escândalos ninguém se demite, são sérios. A televisão continua a ser «séria» e cala todo aquele que quiser fazer humor mais livre e a demitiram-se que o façam os humoristas.

Há actualmente apenas uma revista de humor. Nem todos os jornais empregam humoristas e muitos dos nossos jornalistas e chefes de redacção são bisonhos. Porém, já existe um Salão Nacional de Caricatura com a atribuição de Prémios nacionais; acabou de ser publicado um livro teórico «Do Humor Da Caricatura», que veio colmatar uma lacuna no desenho bibliográfico; há algumas coletâneas de anedotários e recolhas de obras de artistas gráficos.

Pode-se também que temos excelentes cartoonistas, humoristas gráficos com as mais diversas vertentes estilísticas de humor e estética. O mesmo não acontece na literatura humorística, campo com raros criadores. O espectáculo, com a existência de excelentes profissionais onde o humor sobreviveu às várias vicissitudes políticas, está em crise, numa tentativa de renovação.

O humor como «sabedoria» ainda não tem a vida facilitada em Portugal, mas o Zé continua a ser um perito em piadas brejeiras, do humor com a sogra, o bêbado, o sexo, os desgraçados… E, se o português é conhecido pelas suas «cem maneiras de fazer bacalhau», também o deveria ser pela mestria das «cem maneiras de fazer piada com os alentejanos, com a Sida, os países africanos…» O Zé gosta de «gozar» com o vizinho, mas detesta ver-se no espelho deformante do humor, assim como no espelho de português.


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