Thursday, October 29, 2020
«Caricaturistas – Zé Oliveira» por Osvaldo Macedo de Sousa in Trevim de 13/4/1989
O Zé Oliveira é uma presença imprescindível no «TREVIM», é mesmo um símbolo irreverente qua transporta o nome deste jornal para além das suas fronteiras regionais, de como um extraordinário humorista pode fechar-se na província e aí, viver a grande arte do humor na vida quotidiana da Lousã.
Por essa razão, resolvi pregar-lhe uma partida e «roubar-lhe» o espaço onde costuma «despir» os outros humoristas, publicando uma entrevista que ele me deu para um artigo que escrevi para o «Diário de Notícias», de Lisboa. Eis o Mestre do Humor desmascarado.
OMS – Quando começou a desenhar «bonecos de humor»?
Zé Oliveira – É-me difícil referenciar isso
com exactidão, porque não tenho o hábito de guardar desenhos antigos ou
recortes. Começo, agora, a esboçar essa tentativa. Devo estar a ficar velho….
Entre os meus dez e treze anos, residi numa
aldeia transmontana. O meu pai comprava o jornal «a meias» com um vizinho, de
cuja leitura ambos usufruíam na totalidade, mas cujo papel era repartido para
um fim último que justificava a sua aquisição: embrulhar (isolamento térmico) o
almoço do meu pai, ferroviário. Aliás, a minha mãe também foi ferroviária,
abrindo e fechando cancelas, como o fizera a minha avó paterna. Eu não, para
desgosto de meu pai.
Eu, em aldeias do centro do país, filho
único, não tendo sequer rádio em casa, nem garotos por perto e não dispondo
também de livros, que não fossem os da escola, tinha que cuidar de me entreter.
Brinquedos também não tinha, portanto deglutia os bonecos do «Janeiro», risco
por risco e tentava reproduzir alguns. Repito, com 12/13 anos.
Acabados de completar os 13, fui morar para
Miranda do Corvo. Aí estive até aos 21 anos.
Acabado de chegar a uma vila, vindo de uma
aldeola transmontana, tendo que fazer os amigos que não tivera tempo de criar
no norte, tentava afirmar-me mediante o processo mais simples, e mais barato:
fazer bonecos. Aí, privei de muito perto (vizinho de ao pé da porta, também
filho de ferroviários) com um garoto uns 3 anos mais novo que eu, com quem
irmanei o gosto pelas aventuras de comunicação. Ele, hoje realizador na Antena
1 (Coimbra) e, episodicamente, tem feito algumas séries para a RTP – Porto.
Teve alguma influência no desenvolver da
minha componente gráfica, o facto de crescer lado a lado com outro entusiasta
da comunicação.
OMS –Então essa tendência surgiu espontaneamente, porém deve ter havido influencias!!??
Z.O. – Fundamentalmente espontânea, mas
troquei muita correspondência com o Aniceto Carmona (outro caricaturista) – que
eu não conheço pessoalmente. Ele teve uma pachorra deste tamanho para me aturar
e funcionou, para mim, como uma janela aberta para o mundo da caricatura
portuguesa (teria eu os meus 20 anos). Nem ele calcula quanto proveito tirei da
troca de correspondência! Não é que ele mo dissesse explicitamente, mas entendi
quanto perigoso seria embarcar em sonhos dourados, sem consistência.
Influências? Apreciava muito a «Parada da
Paródia» - pelos desenhos e pelos textos – e dividia o meu apreço pelo
trabalho, aparentemente fácil, do Cid, pela elegância das garotas desenhadas
pelo precoce Zé Manel, pelo humor e vigor do traço do Vitor Milheirão, pela
sobriedade de um Machado que, se bem apareceu, melhor desapareceu, pela novidade
dos bonecos do iniciado Agostinho, etc. Não esquecendo a louca mordacidade de
Gustavo Fontoura ou as pormenorizadas encenações do João Benamor. A um garoto
que não sabe o que quer e o que só mais tarde descobrirá quão séria é a tarefa
do caricaturista, a esse garoto todos terão influenciado um pouco.
OMS – Em que periódicos colaborou?
Z.O. – Terei começado por «impressionar» os
fotolitos das páginas da revista juvenil «Zorro» (mas recomendo que ninguém vá
ver…). Depois «Flama», «Ridículos» (muita bonecada de pouco préstimo),
«Magazine», «Capa e Batina» (de Coimbra com bastantes desenhos, incluindo capas
a cores e textos de todo o género e feitio), «Barraca», «Brincalhão», «A-Z»,
«Pé-de-Cabra»… E o encargo de editar um jornal de caserna durante dois anos na
tropa em Angola, feito numa técnica rudimentaríssima (copiógrafo), mas onde a
criatividade conseguiu inserir a policromia a quatro cores, e uma tiragem de
2.000 exemplares – era o jornal «Jamba». Foi uma experiencia de que guardo as melhores
recordações, entre tudo o quanto fiz em comunicação social. Também lá fiz
intensamente (e cumulativamente) rádio, mas o que eu recordo é o jornal.
OMS – Nos anos 60 era mais fácil fazer
humor?
Z.O. – O que eu fazia, eram bonecos sem
profundidade crítica. A minha verdadeira consciência do papel social da
caricatura, só tarde terá ficado amadurecida. Creio…
Fazer umas larachas inconsequentes, como
creio que era quase tudo o que eu fazia, não seria mais fácil nem mais difícil
do que hoje. Porque eu pertenço àquela geração de filhos da ditadura que
aprenderam a fazer bonecos à medida das malhas da censura. Embora eu reconheça
que nos dava muito gozo tentar forçar a malha, num jogo de entrelinhas
subentendidas em cumplicidade com o leitor. Talvez essa encenação de compita
entre gato e rato, que nóse os censoresprotagonizavamos, acabasse por, em si
mesmo, conter uma grande carga de humor de ridículo. Vistas as coisas assim,
seria mais fácil fazer humor. E mais necessário.
Imediatamente aos o Abril de 74, compeli-me
a ensaiar o recomeço, pois estava graficamente inactivo mas, a verdade é que
não fui capaz de fazer humor em plena liberdade. Eu não sabia, nunca tinha
aprendido. Só há uns três anos (creio) me atrevi a (re)pegar nas cnetas, para
desenhar umas coisas apressadas para o jornal «Trevim» da Lousã, a troco do
simples prazer de desenhar. »Trevim» onde escrevo há 21 anos (com uma ou duas
intermitências) desde o nº. 2.
OMS – A opção profissional (não humorística) foi fácil de tomar?
Z.O. – Se calhar, inesperadamente mas
convictamente, digo: foi! Eu não tenho temperamento capaz de estar muito tempo
encerrado, sentado, quieto. Foi assim sempre a minha vida desde garoto:
andarilho deste país. Fui criado «em movimento», como é que eu agora ia parar?
Fui criado a olhar para os comboios carregados de gente que ia para algures…. A
desafiar-me a imaginação e o desejo de também ir…
Hoje sou topografo, por opção e sem patrão,
nem horário. Com muito trabalho de campo e pouco de gabinete, apenas o
suficiente para não deixar secar a tinta-da-china nas canetas, que tanto
desenham plantas como bonecos. È uma actividade que me proporciona o gozo
(egoísta) da permanente reportagem feita para meu exclusivo usufruto.
OMS – Lisboa teria sido um local mais fácil para vingar no humor?
Z.O. – Seria, mas eu nunca quis vingar no
humor, pelo menos em Lisboa.
OMS – Fazer humor local, na província, não é um risco latente de criar inimigos entree os amigos?
Z.O. - … entre amigos, não. Cito Paulo de
Carvalho: «com amigos desses… não preciso de inimigos!». Mas, já reparei que
dois ou três indiferentes (porque não eram amigos nem inimigos), pessoas
localmente bem colocadas, passaram a dar-me apertos de mão, desde que
desenvolvo um boneco incomodativo no jornal da terra. Não vá o diabo (que seria
eu…) tecê-las. Portanto, ao contrário do que pode parecer, até se arranjam
«amigos»…
OMS- Como é que um humorista na província vê a política da capital?
Z.O. – De cima!! A resposta está implícita
na pergunta. Um humorista na província vê a política… na Capital. E
desengane-se quem, na Capital, porventura suponha ter em Lisboa as melhores
meningens lusitanas. Lisboa é uma metrópole, é um cocktail. O Portugal
autentico, genuino é cá fora. O Portugal de Lisboa está carente de identidade,
na medida em que o que ostenta não é verdadeiramente lusitano. Inclusive na
política.
Embora alguns idos do país autentico, os
políticos de primeira divisão não são Zés. Faltam ainda muitas gerações para
que sejam. Muitos são Franciscos, bastantes Antónios; vai havendo, por enquanto,
um ou outro Anibal ou Diogo e coisa assim mas – decididamente – não há Zé que
chegue a Presidente da República, Primeiro Ministro, Ministro ou
Secretário-Geral do Partido. Os Zés começam a aparecer a nível de Secretariado
de Estado e daí para baixo.
O Zé – já Bordallo o profetizava – não
passará da cepa torta da política. As cadeiras de Lisboa estão-lhe
inacessíveis. É assim, estatisticamente comprovado. E não é por acaso, embora o
acaso tenha as costas largas. É uma questão de antropologia? Quase.