Friday, October 30, 2020

«Bastidores da Justiça» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário Popular de 24/12/1988)

  A edição, em França, de uma obra assinada por um reputado magistrado, que se propôs levar os seus leitores aos bastidores da justiça, trás consigo, além de surpreendentes revelações, uma pergunta: E em Portugal? Será que, pelo menos o livro irá ser traduzido e posto à venda entre nós?

                Acabou de me chegar às mãos o livro «A vous de  Juger», de Jean-Paul Jean, enviado pelo meu amigo Siné, esse mesmo que pelo humor luta quixotescamente pela justiça, liberdade e igualdade. Na dedicatória há uma referência a Otelo, porque, tal como ele, defende num desenho-testemunho deixado aos portugueses durante a sua estadia em Lisboa «le Portugal ne será paz libre, tant qu’Otelo será prisonier!».

                 A justiça/injustiça é uma preocupação de todos nós. É curioso que esta obra «A vous de Juger» chegue no momento em que algo, em Portugal, está em crise. São os bastiões da perenidade, da ordem simbólica, que caem ao mesmo tempo, ou seja, a unanimidade no PCP e os laços intrínsecos entre a justiça e o poder político.

                Em Portugal, com a greve dos juízes, o que está em jogo é um estatuto de dignidade, uma justiça que não quer ficar subalternizada, em questões de ordenados, à política. No livro de Jean-Paul Jean, o que está em jogo? «Um debate sobre o que deveria ser a justiça, na ambição democrática de um país» - diz o autor. E acrescenta: «Actualmente, a função de julgar é um ritual, uma teatralização, na qual cada um representa o seu papel. Vocês, espectadores, são por vezes engolidos, sem mesmo conhecerem as regras do jogo

                «Eu proponho-vos – continua Jean-Paul – fazer uma visita pelos bastidores, desmontar a maquinaria, explorar os decors, apontar o projector para lá, onde os actores não esperam, fazer-vos olhar pelo buraco do ponto. Demonstrar pouco, mostrar muito, ao longo desta viagem pela justiça normal, eis a ambição deste livro

                É com simplicidade e humor que o autor (juiz, ex-vice-presidente e ex-secretário-geral do Sindicato da Magistratura, hoje conselheiro-técnico num gabinete ministerial), descreve as fraquezas e vícios desta máquina poderosa e complexa que é a justiça. Por exemplo, sabiam que em França 80% dos casos de roubo ficam por resolver? Que mais de um terço do contencioso penal é consagrado à circulação automóvel? Que uma criança de 10 anos pode ser presa? Que o facto de uma mulher participar em reuniões políticas pode permitir ao marido a obtenção do divórcio? Que pode ser condenado a dois meses de prisão quem for surpreendido a «fazer amor» na natureza?...

                E em Portugal? A este projecto-livro, associa-se Siné, criando ilustrações causticas e irónicas, como é o seu estilo magistral.. Os seus desenhos não são simples comentários aos textos, são provas contundentes da defesa, neste processo de auto-de-fé de um juiz que ainda tem fé na justiça.

                Será que alguma editora se interessará em traduzir esta obra surpreendente para português? Por agora é o livro de Jean-Paul Jean, editado pela Barrauilt, ilustrado poe Siné, e tem o titulo de «A vous de juger».


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