Friday, October 16, 2020
«Artistas Militares na Grande Guerra» de Osvaldo Macedo de Sousa (Edição Tinta da China) "O Zé Soldado, o Zé Alferes e o Zé Capitão é que sofreram as 'passinhas da Flandres'" por Manuel Carlos Freire (in Diário de Notícias de 18 Novembro 2018)
O centenário do Armistício foi o pretexto para o estudo e a publicação de numerosas obras sobre a Grande Guerra e sobre a participação do Corpo Expedicionário Português no conflito em solo europeu. Osvaldo Macedo de Sousa, historiador de formação e especialista em Humor Gráfico, optou por dar a conhecer o envolvimento dos soldados portugueses no conflito através dos desenhos, pinturas e fotografias dos artistas militares que lá estiveram e sofreram os efeitos da guerra.
Qual o ponto de partida desta sua obra?
«Está ligada à investigação que faço há alguns anos sobre artistas como Cristino Cruz, Menezes Ferreira e José Brusco Júnior. É um trabalho desenvolvido há muito tempo e agora, com a guerra.... todos eles foram militares nesse período. Comecei a investigar como a guerra afetou a sua obra e concluí que foi muito importante. Em termos de história de arte, alguns foram muito importantes no modernismo - com o Cristiano Cruz - e são muito pouco estudados.»
Porquê?
«Desaparecem a partir de 1920. Uns seguiram outras opções de carreira militar e outros saíram [das fileiras] porque se zangaram.»
O que traz este livro?
«Há uma imagem diferente da guerra, mais como expressão das suas emoções e uma forma de catarse dos horrores que sofreram. O livro pode ser encarado como história de arte mas, mais importante, são as emoções transformadas em arte. Daí incluir uma série de textos de militares que também sentiram necessidade de escrever sobre a guerra, em confronto com as imagens. A guerra começou em África e aí encontramos os primeiros repórteres militares, que depois continuou em França. O livro começa na retaguarda, depois a entrada nas trincheiras e os combates, a morte e a destruição e todos eles desenham por toda esta viagem. Não é uma visão política, não é contar as histórias dos combates mas a vivência emocional dos artistas e que se refletiram em toda a sua obra. É um livro de emoções e, ao mesmo tempo, um confronto entre o registo em desenho e os primeiros registos fotográficos.»
Qual foi a sua motivação para divulgar estes trabalhos?
«Evidenciar os lados emocionais da guerra expressos pela arte é como fazer uma homenagem a esses militares. A guerra foi um diletantismo politico e das chefias que quase nada sofreram com ela. Quem foi castigado foi o Zé Ninguém, o Zé Povinho, ou, como refere Menezes Ferreira, o João Ninguém. Este livro não é sobre a historia da guerra ou a historia das artes, apesar de tudo estar lá incluído, mas a historia do Zé Soldado, do Zé Alferes e do Zé Capitão que por lá sofreram as 'passinhas da Flandres'.»
Os trabalhos desses artistas-militares na Grande Guerra ajudam a compreender o conflito ou tiveram motivação política?
«Não. A política nem está justificada no porquê da guerra. Faço uma pequena introdução e explico as várias opiniões a favor da intervenção e contra, mas o registo essencial é a vivência das pessoas, o que viveram e sentiram. Alguns trabalhos foram feitos a seguir ao Armistício, quando [os militares] regressaram e sentiram necessidade de defender a sua honra, porque foram mal recebidos e não apoiados no país. Quiseram mostrar que a guerra não foi andar a passear e em hotéis, mas que sofreram toda a violência da guerra e que houve sequelas físicas. Muitos apoiaram o sidonismo contra a guerra, mas essa motivação está afastada destes homens.»
Os autores estiveram mesmo no campo de batalha ou retrataram o que ouviram contar?
«Todos estiveram no campo de batalha.»
Existem diferenças entre os que estiveram em África e os que foram para a Flandres?
«Todos os que estiveram em África estiveram em França. Começam de uma forma mais naife em África e depois vê-se um crescimento na Flandres. Nos tempos mortos devem ter sofrido uma evolução estética que é interessante».
Encontra-se algum traço comum a esses militares-artistas?
«Não, cada um tem a sua visão e ela também dependia dos postos e especialidades em que estavam. Os que estão na frente mostram mais a violência que os ficaram da retaguarda. Mesmo nos fotógrafos, cada um tem a sua visão, tinham pouca formação fotográfica, como o Abrão, um soldado raso que consegue ter uma máquina. Isto é estranho, porque só os oficiais tinham dinheiro para as comprar. Ele revela uma capacidade estética muito interessante e experiências ao nível da reprodução da imagem que revelam ter tido conversas com franceses e ingleses que o ensinaram. Ali também houve uma escola estética.»
Há artistas-militares entre aqueles que estiveram na guerra colonial [1961-1974] e têm participado nas atuais missões internacionais de paz [desde 1996]?
«Conheço artistas que estiveram na guerra das colónias, mas a minha área é mais o desenho e o humor. Houve um, Miguel Salazar, que fez missões nas Nações Unidas e já não está no ativo. De agora não conheço artistas-militares. Mas em África houve milicianos que depois continuaram como artistas e seguiram a sua carreira. No fundo, há quase um paralelo: a arte a surgir como catarse dos horrores que viram nos teatros de operações.... há um artista, que é músico e pintor, onde todo o horror que viveu em Angola ainda hoje está patente na sua obra. São coisas que ainda ficaram e a arte continua a existir como terapia, como catarse dessa violência que viveram.»
Quem é?
«Ele reconhece que o seu trabalho como artista plástico tem sequelas do que viveu na guerra, mas não aceita que isso tenha influenciado a sua vida musical como artista de vanguarda. Por isso não gosta que eu fale nisso, ou seja, ficará incomodado se pusermos o nome dele.»