Tuesday, October 13, 2020

«Almada Negreiros - No Principio era a Linha» por Osvaldo Macedo de Sousa (publicado a 21/7/1984 in Semanário)

«No princípio era o verbo», porém, falando de Almada deve dizer-se «no princípio era a linha».

A linha está nos grafismos do «Homem de Muge», nas garatujas das crianças, nas gravuras de Daunier ou, nas geometrias decorativas da cerâmica popular. A linha é sinal, representação, comunicação. É a expressão mediata das ideias, das sensações, das imagens do universo poético do criador. A linha é na essência a encarnação primária das emoções como forma de linguagem e a transformação das imagens fenomenológicas em formas ideais.

O humor, que dizem ser uma característica única do animal homem, não consiste na criação de um mundo totalmente original, mas sim, numa nova maneira de ver, numa apresentação diferente daquilo que as pessoas olham mas não veem, por simples alheamento do que é quotidiano e monótono, u por fuga consciente. O humor obriga-nos a despertar, a sentir o que se passa à sua volta – como dizia Freud: «o humor não resigna, desafia».

A linha, readquirindo o protagonismo que lhe é inerente, libertando-se de conceitos e preconceitos, torna-se independente. Como expressão de uma linguagem nova, a linha, aliada ao humor como «despertador» irreverente, constitui o veículo ideal para tomar a vanguarda das artes.

«A caricatura ia na vanguarda do Movimento», diz-nos Leal da Câmara, referindo-se sem duvida ao despertar de Portugal para a Europa, para o reconhecimento da irreverencia que despontava no mundo, para a tentativa de recuperação estética num país adormecido nas «margens de Barbizon».

É portanto no seio deste movimento irreverente onde a raiva antitradicionalismo, o espirito nihilista da frustração, o futurismo e o dadaísmo de confundiam, que o humor toma a chefia da vanguarda e que aparece um artista chamado Almada Negreiros. A sua primeira obra publicada aparece em 1911.

Almada, um jovem de educação jesuítica encarnará a revolta antirrepublicana e a recusa do conservadorismo e tradicionalismo monárquico. A sua revolta foi o desejo irreverente de uma juventude com desejo de criar um mundo novo, mas com a sensatez de aproveitar todos os momentos pra aprender e lutar por esse mundo que ele não sabia qual devia ser, mas que sabia como o sonhar. «Toda a modernidade – escreve ele em 1915 – luta contra a subordinação, contra suborno da pessoa humana, pelo forçoso da sua posição no quadro social».

Um dos primeiros e fundamentais mestres na sua orientação estética e estilística foi Christiano Shepard Cruz, um genial artista que, após cofundar o modernismo em Portugal, preferiu retirar-se das artes. C. Cruz foi um dos impulsionadores do movimento dos «Humoristas», incitando-os a transpor os limites das fronteiras das publicações periódicas, nas quais se confinavam até então os domínios da caricatura, levando esta para as Galerias de Arte. Foi também o promotor da quebra da linha estilística rafaelista (bordaliana) que dominava esse género artístico há mais de meio século, cortando assim com o naturalismo decorativista, dando novas liberdades à linha. Se Christiano era um mestre nessa linha livre e expressiva, Almada seria um brilhante discípulo, cuja obra chamou desde logo a atenção dos seus contemporâneos, que o designaram: - veia modernista com um humor «aberto, primaveril, como um belo corpo moço, senhor da sua nudez. Perpassa por todo ele um sopro de graça, adolescente…»

Em 1912 Almada organiza a sua primeira exposição individual, com uma série de caricaturas. Esta exposição não só confirma a sua posição como artista, como o gez entrar na amizade de Fernando Pessoa, o qual será outro dos seus mestres, encaminhando-o para a polémica ideológica no domínio da literatura. Neste campo assumirá um dos postos de chefia da irreverência, do modernismo, do futurismo, não só através da sua obra de ficção, como através dos seus comunicados, conferências e atitudes do dia a dia. Em todas estas actividades, a ironia e a sátira estavam presentes.

Almada nasceu como caricaturista, fez a sua gestão política, criou um estilo de linha angulosa e abstraizante, permanecendo nesse género artístico durante as décadas de dez e vinte. Durante esses anos de estudo, de revolução estética, explorou novas experiencias, novas artes… Entretanto, tinha aprendido na caricatura a liberdade do traço, a síntese da imagem, a comunicação simples e directa do humor. Foi caricaturista, foi editor da primeira revista monárquica de caricaturas pós –revolução republicana («Papagaio Real» 1914) e foi fundamentalmente um humorista-modernista.

A caricatura, para certos críticos, é normalmente encarada como uma obra sem interesse num pintor maior, mas para Almada, além de ser a origem do seu estilo, foi desde logo o reconhecimento das suas potencialidades: «Eu creio que ele tem talento. – Escreveu Fernando Pessoa em 1912 – Basta reparar que ao sorriso do saeu lápis se liga o polimorfismo da sua arte para voltarmos as costas a conceder-lhe inteligência apenas.»


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