Wednesday, July 22, 2020
História da arte da Caricatura de imprensa em Portugal (1932) por Osvaldo Macedo de Sousa
1932
Baltazar tinha 12 anos - escreve Juliano Ribeiro em 1938 no Jornal de
Notícias - e era Groom no Café Chiado -
o elegante café do sr. Júlio Dantas. Era vivo, saltitante, espliégle, um
verdadeiro groom do Séc. XX de espírito alerta e lume no olho. Ora iam pelo
café, ao fim da tarde, muitos alunos das Belas Artes ali adiante, no Largo da
Politécnica. E o Baltazar, como o serviço ali apertava, ficava-se a ouvi-los, a
vê-los trabalhar.
Esses rapazes das Belas Artes era o vivo demónio! Havia-os que passavam
noites inteiras a desenhar, caretas, algumas muito bizarras, outras verdadeiros
retratos - charges. E 0 Baltazar, que trazia um sonho consigo ficava-se a
vê-los, a admira-los, no íntimo, lá muito no intimo, com um grande, um
veemente, um simpático e sincero desejo de imitá-los ...
- Quando eles se iam embora,
quando eu, findo o meu serviço, recolhia a casa de meus pais, todos aqueles
bonecos iam comigo, a dançar, a bailar, como pessoas de carne e osso, como
seres vivos. E dizia de mim para mim que, se quisesse, poderia pô-los a andar
fazendo como faziam os senhores estudantes.
E um dia, ousado, decidido, o Baltazar tentou.
Mostrou a prova, primeira, hesitante prova àqueles dos rapazes das
Belas Artes que lhe pareciam mais amigos ou generosos. E a prova correu todas
as mãos. E foi louvado o engenho, a perspicácia do modesto groom.
Ganhou ânimo o Baltazar. E pelo Natal, com o cartão de boas festas que
entregava aos fregueses do Chiado, levava-lhes também a caricatura - uma
caricatura sem ironias acerbas, risonha, amável, que, no fundo, habituado de
meninos às ruindades do mundo, o Baltazar era psicólogo.
Foi um sucesso. O Baltazar, sem querer, sem pensar nisso, dera um
grande passo em frente na sua carreira de artista.
- Nunca tive tão farta consoada como nesse
Natal. As caricaturas deram bom efeito!
0 nome de Baltazar galgou depressa as paredes estreitas do Chiado Café.
E o Chiado Chiado, o Chiado street - tomou conta dele. Diziam-se prodígios
desse mocinho de 12 anos, vivo saltitante, espliégle, verdadeiro groom do séc.
XX. Leitão de Barros, que o vira muitas vezes sem o notar, despertado por
tantos rumores - atentou nele. Submeteu-o à decisiva prova. Baltazar já
experimentado, saiu-se do exame sem dificuldades. Era o seu segundo, o seu
decisivo passo na carreira difícil e sedutora da caricatura. Pelas mãos amigas
e protectoras de Leitão de Barros entrou no "Noticias Ilustrado". E
pequenino, vivo, sagaz, penetrado do seu sonho - começou a caricaturar Lisboa,
toda a Lisboa conhecida, toda a Lisboa que se preza.
Foi algum tempo à Sociedade de
Belas Artes. Recebeu noções de desenho. Fez exame de instrução primaria. Leu
alguns livros de útil proveito. Estreitou relações. Conviveu com pintores e
desenhadores de muito talento. Franco, leal, sincero, nunca escondeu as suas
origens humildes, criou simpatias profundas, vivas amizades. E hoje, com 18
anos incompletos, alto, magro, vagamente loiro, é já um nome que conta - um
artista de que muito há a esperar.
Segundo o próprio artista,
quem na verdade está por detrás deste lançamento fulgurante do jovem artista de
12 anos, é Olavo d' Eça Leal, que o leva para o "Diário Ilustrado"
onde Leitão de Barros o toma então à sua guarda.
Mas falamos de quem? De
Baltazar Ortega, o mais jovem caricaturista profissional da nossa História já
que a sua carreira se iniciou quando ainda tinha 12 anos. Natural da freguesia
da Madalena, (13/12/1919) filho de família pobre, viu-se obrigado desde tenra
idade em ajudar no sustento da família primeiro como ardina, depois como Groom,
até se lançar no mundo gráfico desta forma holywodesca.
Os seus primeiros trabalhos
como profissional, são reportagens sensacionalistas, onde se explora a sua
tenra idade, e onde se mostram as caricaturas dos jornalistas de varias
redacções que foi obrigado a visitar. Depois passou a visitar festas VIP,
fazendo a reportagem caricatural…
Eis alguns dos comentários do "Diário
Ilustrado" no lançamento do artista fen6meno. ... 0 seu talento, que o tem real, insofismável, flagrante, espontâneo
e soberbo.
Muitos jornais se orgulharão de terem grandes desenhadores. Nenhum terá
ao seu serviço, porém um "groom reporter" como este, que fixa com o
sorriso mais claro e a infantilidade mais natural no seu bloco de desenhos, a
pessoa com quem fala. Qual o jornal da América ou da Europa que manda a uma
reportagem gráfica - um garoto de 12 anos vestido de groom ?
Essa originalidade tentou-nos.
Após esta entrada fulgurante,
em breve caiu na rotina, engrossando a fileira dos caricaturistas que
sobreviviam mal do desenho. Teve sorte, porque graças ao contrato de trabalho,
foi-lhe facultado a acesso à escola, e posteriormente um lugar entre os
gráficos no quadro dos desenhadores da Sociedade Nacional tipográfica, onde
trabalharia uma quarentena de anos para o "Século", "Século
Ilustrado", "Vida Mundial"… A sua função era retoque nas provas
tipográficas, paginação e ilustração, sendo as caricaturas e desenhos de humor
pagos à parte.
Desta forma se inicia uma carreira
que distribuirá trabalhos pelo "Sempre Fixe", "A Bola",
"Primeiro de Janeiro", "Tic-tac", "Século"…
Voltando ao seu lançamento
profissional, é interessante o texto que acompanha a sua reportagem "Como
Baltazar viu Revolução e República", dois jornais opostos politicamente, e
onde se fala de jornalismo numa época difícil: Baltazar não tem política. Toma a sério a profissão jornalística e
considera que estas coisas de fazer jornais é, afinal, um trabalho parecido com
aquele que ele tinha, de vender cigarros. Trata-se de sustentar um vício
público. Em ambos os negócios ele devora papel - papel com veneno, diz-se. Mas
papel sem o qual ele não pode passar. Assim incólume, Baltazar passa das linhas
de fogo da «República» para as trincheiras da «Revolução» - com o seu álbum -
terra de ninguém. Ele aprendeu, quando vendia jornais, a formar, em leque, para
oferecer ao público, todas as opiniões e todas as matizes de pensamento. A sua
mão de garoto ergueu, muitas vezes na rua, páginas que foram febris noites de
redacção, virulentos ataques, sueltos contundentes… e que, ali, nas suas mãos,
era apenas palhetas dum leque de jornais oferecidos, nas manhãs ou nas tardes
frias, como um menu sortido, ao paladar do leitor…
Baltazar, antigo vendedor, hoje cozinheiro de jornais - sabe que a
imprensa à, ainda hoje - hoje ainda ! - um profissão de Ideal, onde alguns
homens ingénuos se contentam com as compensações de letra de forma - enquanto a
grande parte só vive para a «letra» de comércio.
Não apenas de novos artistas
vive o humor, antes de uma constante, e teimosa renovação de periódicos,
perante o também constante e teimosa falência dos mesmos. Assim, este ano, no
Porto surge um novo título, que mais não é que o ressuscitar de um antigo:
MARIA RITA. Dirigido pelo jornalista e caricaturista Octávio Sérgio, eis o seu
editorial de intenções: Só os que forem
muito velhos, acima dos setenta e tantos, se lembrarão ainda da Maria Rita,
esse Demócrito de saias e chinelas de ourelo que passou a vida a rir, e a rir
deu a alma ao Creador, certo dia em que dois ou três casos grotescos desabaram
sobre ela, ao mesmo tempo, como uma nuvem densa de gases hilariantes.
Teve uma morte feliz, - excepção à regra geral, estabelecida pelo
filósofo grego, de que a chorar entramos na vida e a chorar saímos de ela. Para
gozar essa inexcedível ventura é necessário possuir um temperamento muito
especial. Tinha-o a Maria Rita, com uns nervos por tal forma sensíveis que, à
menor cócega na epiderme, disparavam em gargalhadas infindáveis. Foi numa de estas
que lhe faltou o folêgo, - coisa que, ousamos esperá-lo, nunca há-de faltar a
esta, embora a MARIA RITA se proponha rir, e fazer rir, muito mais do que a
outra.
São diversos os tempos, mas a comédia é a mesma. Na política, na
sociedade, na própria vida do povo, os casos cómicos alternam com os trágicos,
sendo que os factos risíveis sobrepujam em número os que mereçam a compunção
geral. A crónica da vida portuguesa, para ser perfeita, teria de ser escrita
por Aristófanes e ilustrada por um caricaturista. O que se nos afigura exagero
nada mais é do que a realidade. Todas as coisas, mesmo as mais solenes, mesmo
as mais sublimes, mesmo as mais emocionantes, teem um lado intensamente
ridículo. É essa faceta que a MARIA RITA se propõe focar. E tenham a certeza de
que - mesmo quando falar a sério - há de estereotipar-se no seu semblante um
esgar de riso.
«A vida é feia, a vida é triste» - afirma o último personagem de
António Ferro. Engano! A vida é diabolicamente linda, como um sorriso de Greta
Garbo, e prodigiosamente alegre, como uma carteira a transbordar.
Mas, mesmo que assim não fosse, - tristezas não pagam dívidas. Cá em
casa não se admitem lágrimas, a não ser o «lacrima-cristi». E ainda assim,
prefere-se-lhe o champanhe: no cristal transparente da Verdade, a espuma
saltitante do Riso.
Em Julho de 1932 de novo a
D.G.S.C. procura-se justificar a Censura com Instruções Gerais nos seguintes
termos: “1º - A Imprensa periódica é o mais poderoso e eficaz meio de
propaganda. Por isso mesmo, tem uma complexa e elevada missão social a
cumprir...; 4º - A Censura Prévia é o meio indispensável a uma obra de
reconstrução e saneamento moral...; 5ª - A intervenção da Censura,
rigorosamente condicionada pela necessidade de evitar a publicação de ideias e
factos, consideradas prejudiciais ao bem público, deve exercer-se na medida
justa. O corte não é uma punição mas, frequentemente, uma indicação para o
jornal...; 10º - Sendo a Ditadura um regime de honesta legalidade, é de desejar
a serena critica de todas as medidas governamentais que para esse fim forem
dados a público, com o propósito manifesto de uma útil colaboração...; 15º - A
Liberdade de Imprensa, justamente compreendida, não implica o uso de linguagem
despejada, do insulto soez e da grave injúria às crenças religiosas de cada
um...; não serão permitidas referências desprimorosas... irreverências às
autoridades...notícias de atentados e julgamentos por motivos políticos... Critica
sistemática aos actos da Ditadura... alusões aos serviços da Censura...” É
curiosa a defesa de que o corte não é uma punição, mas um indicador de como se
deve dar as notícias...