Saturday, May 09, 2020

História da arte da Caricatura de imprensa em Portugal (1927) por Osvaldo Macedo de Sousa


1927

Referi a importância de Pedro Bordallo Pinheiro à frente do projecto "Sempre Fixe", mas Francisco Valença foi também uma pedra chave na fundação deste jornal, e na sua sobrevivência ao longo dos anos, com qualidade e humor. Essa importância é reconhecida no próprio jornal, no último número de 1926, onde lhe será feita uma homenagem, e onde são publicadas as seguintes palavras (30/12/26): Francisco Valença, gordinho, sorridente, cor de rosa, como um pucarinho de barro é, sem dúvida, o melhor caricaturista do Sempre Fixe, onde tem feito tantas páginas de honra, que a de hoje, marca bem uma merecida, particular e confidencial consagração.
Valença, embora o apelido o diga raiano, é português, português de lei, contrastado na pia do baptismo, com a mais viva ironia, que é possível fantaziar com a fantazia das mil e uma noites…
Nenhum político lhe tem escapado, nenhum acontecimento, nenhum artista, nenhuma mulher bonita, e até mesmo feia. O seu lápis é uma maravilha de dissecação, de evocação e de condenação. Francisco Valença é o continuador de Rafael Bordallo. A sua caricatura é desenho, é arte, é, principalmente, vida, oportunidade, incidente.
O Sempre Fixe que lhe deve muito, não se julga pago com a página de hoje.
A amizade paga-se com a amizade. Valença, amigo! Um abraço! Um aperto de mão! Mais caricaturas e mais legendas que só você sabe fazer: sintéticas, luminosas, lapidares sob um desenho de mestre, que são todas quantas saem do seu lápis prodigioso e magnifico.
Até ao juizo final da caricatura, Valença! Quando encontrarmos na barca de Charonto lá nos encontraremos todos. Óptima oportunidade para irmos de cambulhada para o Inferno fazer o Sempre Fixe dos nosso e dos seus pecados.
Ele será uma figura que marca as próximas décadas do humor nacional. Não por ser um vanguardista, um irreverente na estética, ou no humor. Antes pelo contrário, é um académico de traço e humor, contudo é um reflexo do gosto popular de então, com qualidades acima da medianidade vigente noutros jornais de humor. O seu humor será mesmo um exercício constante de espírito, jogando entre as ousadias possíveis nesses tempos, e um diálogo directo e cúmplice com o público geral. Por alguma razão tinha quase a exclusividade das primeiras páginas do "Sempre Fixe".
Razão tinham os humoristas da década de dez quando diziam que no humor político já Raphael tinha feito tudo, não se fazendo agora mais que o imitar, e na maioria das vezes mal. Na realidade a criatividade satírica não era muita, e como exemplo veja-se "Os Ridículos" onde um Silva Monteiro e um Alonso durante anos fizeram críticas com um traço interessante (apesar de académico), mas onde se repetiam os constantes lugares comuns da espoliação do Zé, da engorda dos açambarcadores, das bombas políticas e revolucionárias… Valença, imitando Raphael, saberá ser criativo, saberá dar um novo impulso à sátira política. Como contraponto, que sempre foi o "Sempre Fixe", a contracapa esteve durante anos entregue ao modernismo de Carlos Botelho, numa outra forma de fazer humor e política.
A trajectória de Francisco Valença (1882/1949) já tinha começado no início do século, precisamente em 1900 no seu jornal "O Chinelo", aparecendo posteriormente trabalhos seus na "Comédia Portuguesa", "Gafanhoto", "Supl. Século", "O Moscardo", "O Mundo", "Varões Assinalados", "A Capital", "Límia", "Diário de Notícias", "Tiro e Sport", "Sátira", "Ilustração Portuguesa", "Espectro", "Arte Musical", "Alma Nacional"… "Sempre Fixe" numa dura luta pela sobrevivência: Trabalho até quando os outros descansam aos domingos. Pode tudo desertar, mas eu tenho de ficar debruçado sobre uma mesa para o "Sempre Fixe".
Álvaro de Castro, em Dezembro de 1910, na "Límia" escreveu este Esbocete Crítico sobre Valença: Escrevi um dia algures : «A caricatura é uma arma poderosa de combate e de um alcance incalculável. É o meio de propaganda mais rápido e de mais profundos efeitos. É isto pela simples razão de que, para entender um artigo e para ele fazer emergir uma convicção num cérebro qualquer, é necessário que esse cérebro saiba ler, e para uma caricatura convencer alguém, basta que esse alguém veja e seja sensível. Pode o indivíduo não atingir a profundidade filosófica de uma caricatura, pode um cérebro menos apercebido intelectualmente não ver ao primeiro relance a força poderosa de um grande raciocínio, que quatro traços conteem e resumem, mas o que decerto logo fere e se grava no espírito é o sentimento, a emoção que o artista nela lançou. Um desenho apanha-nos pelos sentidos, domina-os rapidamente, e depois o cérebro sobre essa impressão trabalha lentamente produzindo a ideia. O trabalho é inverso de aquele que se realiza quando na leitura de um artigo. Aqui o trabalho é todo intelectual, sem apoio no sentimento, e por isso menos violento, menos vincado; deixa-me dizer-te assim.
/…/ É a caricatura: uma obra sã atraindo e interessando; uma arma posta ao serviço dos que pugnam pelo bem e pelo justo.
É o riso, a troça feita aríete para derrubar e esmagar tudo o que oprime, tudo o que sufoca: seja uma ideia, seja um facto»
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Estas palavras, agora transcritas, julgo-as, neste momento, de uma justa aplicação, como abrangendo a arte de Valença, na generalidade da sua fórmula, embora este nosso artista se tenha individualizado numa forma muito particular: não é um lutador à maneira de Forain, mas um eloquente biógrafo das nossas celebridades à maneira de Leandre.
Em curiosos e interessantes desenhos revela-nos um tipo em foco, põe-nos ao facto das suas preocupações intelectuais e elucida-nos, com facúndia não vulgar, sobre os meandros obscuros do seu carácter, expondo-nos, em quatro traços, o seu feitio moral, ainda que amplificado pela visão caricatural dominante.
Depois de borboletear, com encantadora virtuosidade, pelo ubérrimos campos da caricatura impessoal sentou, ao que parece, definitivamente praça na corte que contou como um dos seus mais audazes guerreiros o grande André Gill e onde aonde hoje esgrime, com um bem aparado e fino lápis, o gordo e prazenteiro Leandre.
Salienta-se, no entanto, o nosso caricaturista por uma maneira muito pessoal de sentir, que singularmente faz destacar os seus portraits-charge como obras caracteristicamente distanciadas da vulgaridade e intensamente individualizadas como produtos artísticos.
Á qualquer coisa de combativo verrineiro nos seus desenhos que lhes dá o aspecto agressivo de uma ironia mordente como vitríolo.
Está longe de Barrére, o caricaturista das celebridades europeias, que procura com uma grafia simples provocar o riso, ou amarfanhando as figuras dos caricaturados em posturas críticas, ou alçando-as num gesto heróico de trabalho de feira.
Afasta-se de Gill que reproduz com pequenas alterações a fisionomia do modelo, dando-lhe o carácter de charge pela desproporção entre a cabeça e o resto do corpo: a verve cintila por vezes alimentada unicamente por uma legenda elucidativa.
Diverge de Leandre cujo processo consiste em exagerar desmesuradamente os defeitos do caricaturado, levando-os ao inverosímil. Faz o monstro e, sem sugerir o riso, ridiculariza, amarrotando, num espirituoso desenho, a mais hierática personalidade. As suas caricaturas lembram as imagens produzidas por espelhos esféricos.
F. Valença, reforçando os defeitos do modelo, acentua-lhe o carácter moral e anima o todo com uma legenda feliz.
O seu desenho é sóbrio sem ser mesquinho, exacto sem ser pobre.
Valença sabe o que muitos caricaturistas entre nós não sabem: desenhar.
Junte-se a este conhecimento o talento de descortinar a linha característica de uma personagem, de colher os ridículos do gesto e a habilidade de saber dar num desenho fortemente sentido a sua completa visão de artista. É por isto, e justamente, considerado um digno sucessor do Bordallo Pinheiro do Álbum das Glórias.
Mas o projecto "Sempre Fixe", como já foi referido é um projecto de vanguarda, onde todos os artistas de qualidade têm o seu espaço, e todos os grandes, do humor, das artes gráficas, e até da pintura por aqui vão deixando a sua obra. Um desses artistas é Jorge Barradas, que a 20/10/1927 é homenageado, e onde são publicadas as seguintes palavras: Há 17 anos fundou Joaquim Guerreiro a Sátira, belo jornal de caricaturas, que teve a vida efémera de três números, não porque não merecesse o favor do público, mas porque, como quasi sempre succede, o seu proprietário julgou que, tratando-se de um jornal para fazer rir, a sua administração era também uma brincadeira. Tudo à matroca, sem ordem, sem método, sem disciplina… E a Sátira morreu.
O que não morreu foram algumas amisades sãs que por lá se criaram.
Frequentavam a casa, João Bastos, Valença, Alberto de Sousa, Carlos Simões, Menezes Ferreira, Forjaz Sampaio, Leal da Câmara, Alfredo Cândido, Stuart Carvalhais, Luíz Ortigão Burnay e um garoto loirinho, planta de estufa que nunca tinha apanhado sol, com uns olhos de azul ultramar, - um garoto imberbe, que já dava água pela barba a muitos homens com barba na cara.
Fazia bonecos e corava. Corava quando se lhe dizia uma piada ou quando se lhe fazia um elogio. Dirigir-lhe a palavra era quasi afrontá-lo. A sua pele branca, daquele branco aveludado da pele das donzelas casadoiras, tingia-se de vermelho, com tanta facilidade, que a gente chegava a ter a impressão de que o petiz tinha levado à cara as mãos sujas de tinta vermelha.
Não sei se chegou a desenhar sentado nos joelhos dalgum camarada. O que posso afirmar, é que foi amimado como um menino da família, ou como um caõsinho de estimação, e assim se fez homem, e era um artista - era o Jorge Barradas.
Cresceu e tem aparecido.
Como já referimos a 28 de Maio de 1926 um golpe de estado instala a ditadura. Esta de imediato impõe limitações ao direito de informação, instituindo a Censura. Aconteceu a 22 de Junho de 1926, por nota enviada pela Polícia Cívica a toda a Imprensa: “Por ordem superior levo ao conhecimento de V. que a partir de hoje, é estabelecida a Censura à Imprensa, não sendo permitida a saída de qualquer jornal sem que 4 exemplares do mesmo não sejam presentes ao Comando-Geral da GNR para aquele fim.” Todos passam a ter que levar o dístico “Visado pela Censura”.
Se ao longo de todos estes anos nunca deixou de haver Leis condicionantes das Liberdades de Expressão e de Pensamento, de acções policiais opressivas sobre a imprensa, pela primeira vez o termo Censura é assumido, e publicitado. A 5 de Julho de 1926 é publicada a nova “Lei de Imprensa” pelo Decreto-Lei 11839, assinada por Gomes da Costa, decretando a Censura, não obstante de aí se ler que é “licito a todos manifestar livremente o seu pensamento por meio da imprensa, independentemente de caução ou censura e sem necessidade de autorização ou habilitação prévia”. Devido aos protestos gerais, a Lei foi suspensa a 8 de Julho, mas reposta a 9 após golpe de Estado que depõe Gomes da Costa, sendo substituído por Carmona. Este reforça e confirma a Censura com o Decreto 12008 a 12 de Julho de 1926.
O “Sempre Fixe” será o principal denunciador da censura, satirizando-a, usando os ícones representativos como: A Rolha, O Lápis Azul, A Tesoura, enriquecidas agora com a criação da personagem D. Censura. A sede da censura é o Quartel do Carmo, Quartel-General da GNR, o que dá azo a uma nova iconografia da Censura a Nª Srª do Carmo.
"Os Ridículos", se no início estava calada em relação a este tema, com o tempo, de uma forma menos frontal, irá mencionando as dificuldades de poderem dizer o que lhes ia na alma irreverente.


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