Thursday, May 28, 2020
História da arte da Caricatura de imprensa em Portugal (1931) por Osvaldo Macedo de Sousa
1931
Muitas são as histórias de
cortes censórios incongruentes e anedóticos, como humorísticas foram muitas das
formas utilizadas para ludibriar os censores. Contudo não é nosso objectivo
fazer o estudo histórico ou antológico da censura, mas um levantamento
iconográfico.
Ora, o Píu do Carlos Botelho é uma das “estórias” do jogo com os censores,
ao mesmo tempo que é um ícone.
Carlos Botelho em seus “Ecos
da Semana” procurou criar alguns anti-herois como o “Escarra e Cospe”, “Parece
Mal”...e o “Píu”, o mocho que denuncia que a censura passou por ali. É um ícone
só para iniciados, mas dessa forma Botelho informava seus leitores que naquela
semana tinha havido cortes.
A referência à censura foi
uma constante, e os censores nunca se preocuparam de a esconder, de cortar
essas referências, esses lamentos constantes. Neste ano, a 28 de Agosto uma
circular da Direcção-Geral dos Serviços de Censura justifica-se como um meio indispensável na obra de
reconstrução e saneamento moral. Reconhece o notável papel que à Imprensa está reservado nessa obra sagrada de
amor pátrio, em que quase toda diz colaborar, mas de facto, oferecendo em
alguns dos seus órgãos o triste exemplo de uma intencional atitude de reserva
perante actos graves contra a Pátria e que de modo algum, se harmoniza com as
pesadas responsabilidades inerentes à sua elevada missão social.
Um meio indispensável, era o
humor gráfico, que já tinha conseguido conquistar o seu lugar na imprensa. Já
era raro o jornal, principalmente de âmbito nacional, que não publicasse
caricatura, o que não impedia de se procurar manter viva uma imprensa
especializada no humor.
Neste ano surge,
efemeramente, mais um novo jornal que se intitula "A Paródia", e onde
Tinop apresenta este editorial:
Por força, talvez daquele sentimento paradoxal que caracteriza a nossa
raça, criou-se para Portugal a lenda dum país triste, quando Portugal é uma
terra essencialmente alegre. Pouco importa ter o quinhentista Francisco Sá de
Miranda, que Deus haja, afirmado que em Portugal todo o negócio é suspirar e
dizer adeus. Era por acaso o sr. Sá de Miranda matriculado na praça de Lisboa,
para discretear sobre negócios de suspiros como qualquer pasteleiro ? Pretendia
ele mesmo, por ventura, julgar-se mais entendido nesse negócio do que o sr.
Júlio Dantas que os dá maiores que peros camoeses ? /…/ Portugal é um país
fisiologicamente patusco, sempre disposto a mirar o lado faceto das coisas como
Nação onde está em definitivo consagrado o Fado Rigoroso como expressão musical
da raça, o sr. Qualquer Coisa, como expoente político e o cauteleiro fardado,
como síntese filosófica.
O Fado Rigoroso é, na autorizada opinião de Augusto Marceneiro, o forro
de todas as patuscadas fora de portas, onde a mocidade ardorosa da nossa
idealíssima república consagrada as venturas do viver alegre com dois
decilitros e uma azeitona, para fazer boca. Na politica só o facto de nela se
mexer como um vibrião o primeiro desconhecido que o jornalismo ponha a
circular, basta para o País solfejar toda a escala da risota que produz as
gargalhadas mais homéricas.
Quanto à filosofia, meus ricos senhores que me dizem vossa senhorias à
bela filosofia do cauteleiro fardado ? Ela é toda uma escola e um sistema.
/…/ O cauteleirismo fardado, entrando como sistema filosófico, na nossa
ética social, imprimiu-nos a nossa actual fisionomia despreocupada, alegre,
absolutamente não-te-rales, sempre bem disposta e risonha, de quem se sente
arrumado sob este regime, criação das inteligências mais solertes, e com ele o
Povo recuperou o riso monumental, o bom
riso português. /…/ Esse riso é o melhor e o mais módico remédio de todas
as penas que, sob a forma capciosa de governos, impostos, dívida pública,
fomento nacional, tratados de comércio, ponte sobre o Tejo e outros clichés que
fazem parte do programa de todos os salvadores, se aplicam periodicamente e
sofrida alimária pública, não desfazendo. Já o dissera San Francisco de Assis,
que foi um grande Santo, que o riso é a fortuna dos pobres e, embora se oponha
tenazmente a esta medicamentação contra-hepática a industria de farmácia,
recomendando-nos sobrepticiamente as excelências da jalapa e do óleo de castor
na descongestão do fígado, continuamos a crer que o riso não só desopila, mas é
a melhor higiene das almas. Bem o sei, ai de mim ! que os Azevedos e os
Estácios são uns pérfidos concorrentes do riso nacional, o remédio que Deus nos
deu, como nos deu o ar, o sol criador, a luz da lua que faz grelar várias
espécies horteloas, e o que todos os Estácios pretendem é fazer negócio, e o
negócio é uma poderosa instituição nacional, quer se trate da industria
nacional, quer se trate da industria mezinheira, quer se trate de cama, mesa e
roupa lavada de qualquer bacharel, autenticamente analfabeto, que o regime
venere como peça orçamentaria. Mas o riso, felizmente para nós, está ao alcance
de todos. ainda é a mercadoria que o fisco não taxa, nem a Alfandega apreende,
nem com que o sr. Intendente da Polícia embirra. Toda a gente o possui na alma
ou nos sovacos. E desperta-o simplesmente ou as jogralidades da política ou algumas
cócegas nas axilas. Louvado seja deus, que nos é dado poder rir ainda sem
despesa de maior!
O Humor gráfico esteve então
dominado pelo jornal "Sempre Fixe", já que era aí que trabalhavam a
grande maioria dos artistas que então se dedicavam ao humor gráfico, os mesmos
que depois cobriam o resto da imprensa com suas colaborações. Muitos eram os
artistas, mas o "Notícias Ilustrado de 3/5/1931 destaca os seguintes
"Homens dos Bonecos" : Quantas
vezes o leitor, depois de ter sorrido em concordância ou de ter rido
alegremente com a «charge» ou o espírito inventivo duma caricatura, terá dito
para consigo, referindo-se ao caricaturista : «Quem será este demónio?»
Para corresponder um pouco a esta legítima curiosidade, o «Notícias»
Ilustrado decidiu revelar pela fotografia as veras efígies desses » demónios» e
- o que é mais - a maneira jocosa e caricatural por que cada um deles se vê a
si mesma.
Sem preocupações de precedências, fundadas em quaisquer razões
especiosas, aqui apresentamos os nossos caricaturistas, tal qual eles são e tal
qual eles a si mesmo se vêem, através da própria «verve».
Stuart, também conhecido pelo carvalhais, pai do Quim e do Manecas,
grande desenhador de rapariguinhas impúberes, uma fantasia desencadeada ao
serviço dum indiscutível talento, desenhando indiferentemente com um pau de
fósforo ou um pincel sem rama, especialista na estilização de membros
locomotores femininos. Graça, estilo, desenho inconfundível.
Francisco Valença, que começou por se meter num «Chinelo», jornal de
caricaturas em que se estreou é o indispensável caricaturista pessoal, que se
assinalou varonilmente nos «Varões Assinalados» e hoje continua, no «Fixe», as
mesmas brilhantes tradições. As suas legendas, como os seus dísticos, são o
documentário precioso dum fino e ousado espírito de observação e de sátira.
Luís Cunha, o popular D. Fuas, é a síntese da moderna geração, um dos
mais vincados representantes das tradições artísticas da caricatura no Porto,
onde o Dr. Manuel Monterroso, camarada de Rafael Bordalo, representa ainda hoje
a velha guarda da «charge» pelo traço e do comentário que o lápis fixa, em
poucos riscos de certeira ironia.
Em paralelo da mocidade de D. Fuas, tem Lisboa a mocidade de Botelho, o
«ecoador», porque faz, os ecos da semana, em traços graciosos e duma marcada
personalidade, que já lhe criaram justo renome.
Tom, Tomás de Melo é o modernismo na caricatura, quase diríamos, sem
duplo sentido, a caricatura do modernismo. As suas exposições criaram-lhe um
público.
Emmérico Nunes, sem ser futebolista, é um internacional. As suas
caricaturas passam as fronteiras. Colaborou no «Meggendorfer», semanário
alemão, assiduamente e hoje ilustra as páginas do «Buen Humor», com um humor
que justifica o título daquele semanário humorístico espanhol. A sua arte e o
seu espírito são inconfundíveis.
Cunha Barros é um humorista declarado. Os seus desenhos, como as suas
legendas, atestam que a nossa afirmação não peca por exagero.
Amarelhe… mas será preciso falar de Amarelhe, que tem caricaturado toda
as gerações teatrais, incluindo as que estão para nascer ? Mesmo que ele não
assinasse até os cegos conheceriam os seus desenhos, tal é a nota de impressiva
personalidade das caricaturas deste autentico caricaturista.
Estão apresentados os nossos mais notáveis caricaturistas, o que talvez
fosse dispensável porque o leitor, se os não conhecia pessoalmente, conhecia-os
pelas respectivas obras, que é o que importa ao artista.