Saturday, May 23, 2020

História da arte da Caricatura de imprensa em Portugal (1930) por Osvaldo Macedo de Sousa


1930

Contrariamente ao que acontece hoje, nestes anos os humoristas eram artistas que se conheciam, que trocavam amizades, que regularmente homenageavam os colegas na imprensa. Esta relação, apesar de não ser geral, antes por grupos, intensificou-se com a tentativa de se criar a Sociedade de Humoristas em 11, reforçada sempre que se levou avante um Salão. A questão de realização dos Salões era um amargo de boca que permaneceu ao longo dos anos, e 1926 foi a última tentativa neste período que tratamos. Os artistas não conseguiam ter capacidade organizativa, de ter espírito de união para criar uma estrutura permanente.
Havia naturalmente concorrência, e muita, já que a luta pela sobrevivência neste campo era férrea. A maioria tinha mesmo que se dedicar ao humor apenas como uma segunda via criativa, conciliando com trabalhos no âmbito  da decoração de montras, stands, publicidade, ilustração e artes gráficas, cenografia… Outros dedicavam-se ao humor, porque a pintura era o seu objectivo, mas esta é que não dava mesmo para sobreviver.
Eram concorrentes, pode-se mesmo dizer "inimigos", mas isso não impedia a admiração mutua, e um certo cavalheirismo. São interessantes as constantes saudações entre os artistas na imprensa de então, publicando-se a caricatura dos colegas, umas "larachas" humorísticas… Este hábito irá desaparecendo com o tempo, com o evoluir da ditadura, o evoluir da desconfiança, o evoluir das dificuldades da sobrevivência do próprio riso.
Após um período em que o Humorismo foi dominado pelas vanguardas estéticas, por artistas que apenas usavam o humor como formula de irreverência num caminho plástico mais ambicioso, reiniciou-se a recuperação deste género artístico por uma nova geração de "cómicos" gráficos, em que o suporte tanto pode ser académico, ou de cunho sintético-modernista, mas onde predomina a anedota. O ironista dá lugar ao cómico, o Bobo ao palhaço pobre.
A 23/1/1930, no "Sempre Fixe", surge esta estranha notícia:

Vai Fundar-se A Associação dos Humoristas.
Isto hoje vae a sério.
Vae fundar-se a Associação dos Humoristas.
A ideia teve-a o nosso distincto colaborador dr. Augusto Cunha. Teve-a e abandonou-a, expô-la na roda… de amigos com quem conversa habitualmente, e o Sempre Fixe, condoído da pobre exposta, perfilhou-a, recolheu-a no seu seio e propõe-se ser a sua ama seca, porque o Fixe a não pode ser de leite, apesar do deleite com que o lêem todos os seus amigos.
Da nova Associação farão parte todas as pessoas engraçadas de Portugal e, por uma transigência especial, todos aqueles que caírem em graça e tudo isto de graça, porque na associação dos Humoristas não haverá cotas. Cada um dos associados dará apenas a sua quota-parte de graça e com isso ficará quite. Esta inovação, além de outras muitas, teem a vantagem de ir educando o público nesse sentido. a fim de ver se se consegue que ao cabo de algum tempo o sistema se generalize. E quando se conseguir esse desidaratum, a vida embaratece. Chega-se ao alfaiate, ao sapateiro, etc., manda-se fazer um fato, calça-se umas botas, larga-se duas piadas (duas ou trez conforme o valor da mercadoria) e pronto, está pago.
Para a nova Associação vão ser convidados os humoristas propriamente ditos, desde as parcerias teatraes, até os parceiros que se encostam à porta da Havaneza, à esquina do Rocio, às arcadas do Terreiro do Paço e largam duas larachas. Ah ! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! não diga mais. Está feito sócio.
Nela entrarão os caricaturistas, os actores cómicos, os nossos colaboradores e até nela poderá ter assento qualquer pessoa.
O Sempre Fixe, será o órgão da Associação, dando aos seus leitores fiel relato da marcha dos acontecimentos: actas das assembleias gerais, notícias sobre as festas a realizar, conferências, publicações, viagens, concursos para admissão dos novos associados, etc.
Para se avaliar do interesse que terão esses relatos basta dizer que, logo de início, foi estabelecido por quem lançou a ideia, que nas assembleias geraes se não mandariam para a mesa moções, requerimentos e outras estopadas deste género, mas sim boas piadas. /…/ Que numa palavra, as assembleias deverão decorrer por forma tal que o próprio secretário, perante a maré cheia de piadas, se veja tão embaraçado, que em vez de fazer a acta, não ata nem desata…
Uma pretensão não assinada, onde se defende, não a criação de uma associação de Humoristas, mas de contadores de piadas, uma associação de portugueses, já que estes sem humor, mais não sabem que ser um povo de anedota. Por isso esta associação nunca se formalizou oficialmente, mas sempre viveu à mesa do café, das tascas, à volta de um copo de vinho…
Falando em vinho. Em Agosto deste ano resolveu-se homenagear o humorista do povo de Lisboa, Stuart Carvalhais, instituindo O Dia de Stuart Carvalhais. O "Sempre Fixe" de 27/8/1930 relata desta forma como é que os outros jornais homenagearam o artista neste dia: Quinta-feira passado pode considerar-se o «dia de Stuart Carvalhais».
Disse o «Diário de Notícias» pela pena de Armando Boaventura: «De Dia - uma «pochade» de Malhôa. De noite - um «carvão» de Gavarni, de Forain ou do nosso próprio artista Stuart Carvalhais - artistas do lápis, artistas das manchas sombrias, dos esboços confusos. De todo esse desenho admirável feito de impressões rápidas, sem linhas definidas, sem contornos marcados e onde existe e vive, mais do que a forma, a alma dos seres…»
Matos Sequeira, no «Século» escreveu: «A capa é uma alegoria, a três cores, ao calendário, feita sob um aspecto moderno, na qual se destaca a figura de uma boneca de Lenci, devida ao talento de Stuart, que soube ainda encontrar uma interpretação nova aos velhos símbolos do Zodiaco»
E António Lopes Ribeiro acompanhou, com estas palavras, uma bela capa do «Kino»:
«A Severa é uma figura tipicamente portuguesa capaz de inspirar artistas como Leitão de Barros - que lhe vai dedicar um grandioso fonofilme - e Stuart de Carvalhais, - que soube pôr neste belo desenho todo o pitoresco e todo o «sabor» das estampas antigas.»
O «Sempre Fixe», na impossibilidade de oferecer a Stuart, para comemorar o acontecimento, um «Porto de Honra» -porque o artista está…«a aguas» - dá-lhe um apertado chi-coração, e pede-lhe que continue…
Neste ano, em Maio, desaparecerá um dos símbolos do Humorismo destas décadas, ou seja o Director e principal redactor do jornal  "Os Ridículos" - Cruz Moreira, que assinava textos principalmente com o pseudónimo Caracoles, assim como de Eva de Liz… Eis as várias homenagens que se publicaram no seu jornal, logo a pós o seu desaparecimento. Este texto é assinado por J. Correia dos Santos: Convivemos com Cruz Moreira desde a época das suas primeiras tentativas para a fundação de bi-semanário os Ridículos, acompanhando-o nas suas diversas vicissitudes e nas dificuldades a vencer para lançar o Petiz Jornal, de duração efémera, até alcançar o período áureo que conquistou, após a nova tentativa, o qual lhe foi assegurado em circunstâncias oportunas, pelas faculdades da graça espontânea, com que a Natureza o dotou, aplicada sempre com êxito, n'uma crítica mordaz, mas correcta, num campo de acção tão fértil em acontecimentos, que se prestavam a um comentário jocoso.
Cruz Moreira foi o jornalista português que mais conseguiu; sozinho, conquistou a simpatia do grande público, pelas suas faculdades de improvisação imediata, por uma verve inesgotável, pela sua alegria comunicativa e por um permanente humorismo contagioso. Os seus momentos de tristeza passavam despercebidos, eram disfarçados por uma disposição alegre, e rindo mais ou menos, ia sempre castigando severamente os costumes da sua época.
/…/ A sua origem modesta e uma preparação deficiente eram largamente compensadas pelo seu génio da fantasia humorística, que não dava tempo a reflectir, na sua por vezes descuidada imperfeição da forma, que aliás era muito original e justamente apreciada…
Um texto de Ventura Abranches recorda-o desta forma: Há homens que perduram toda a vida a sua obra como um bloco enorme de granito; outros que vivem a sua hora, e ainda outros a sua aparição !
Cruz Moreira - o rei do humorismo, da graça portuguesa e o que perdurará eternamente, não viver apenas a hora da sua aparição, verá tão eterno como eternos são os homens que sabem antepor o seu talento cheio de vida, fluido e palpitante nos milhentos casos que o seu espírito altamente elevado marcam com o seu estilete de graça e de riso o momento que viveram.
Um dia que se faça a história do jornalismo onde se tenha de prestar justiça ao talento e à graça, Cruz Moreira aparecerá tão alto no conceito do historiador, como o mais aquilatado espírito de infatigável trabalhador, rendendo graças, risos irónicos e chicotadas, como uma cornucópia de onde brotassem gargalhadas, cheias de bom humor.
Cruz Moreira - foi o símbolo da nossa raça, tão cheia de riso e de amargura, a sua pena tinha sempre fulgores como a espada d'um herói e rosas como diadema a corar o riso do castigo…
Com o desaparecimento de Caracoles, os Ridículos terminam um fase da sua vida. Se mantiveram Alonso, como depois virá Stuart como autor da primeira página, o jornal, por força de falta de artistas de qualidade, por razões de censura política obrigando o humor a refugiar-se no anedotário básico, irá mudar aos poucos, entrando numa gradual decadência. Contudo manter-se-á, a par do "Sempre Fixe" como uma testemunha viva e actuante da imprensa humorística, ao longo dos anos.


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