Sunday, May 17, 2020
História da arte da Caricatura de imprensa em Portugal (1929) por Osvaldo Macedo de Sousa
1929
Este fim de década, tal como
na anterior, é um período de transição estética, de meditação e questionação do
percurso criativo. Por essa razão vamos encontrar, principalmente a partir de
1926, uma série de artigos teorizantes, sobre o que é o Modernismo, o que é o
Humorismo, ou suas raízes estéticas…
Para que se tenha uma maior
percepção dessa angústia de definições estéticas, vamos aqui transcrever uma
série de artigos publicados na revista "ABC" sobre o tema:
A 7/10/1928, um artigo de
Ferreira de Castro medita sobre "O Humorismo da Arte Moderna" - Uma das mais representativas facetas da
arte de vanguarda, é a sua parte pitoresca, humorística. Os novos artistas,
querendo reagir contra as formulas, já consagradas, contra as escolas, contra
as academias, abandonaram as linhas suaves, as curvas subtis - e procuraram o
ângulo, sobrepondo o Egipto à Grécia. Simultaneamente, e com o trabalho sério
(Picasso, por exemplo dentro mesmo das formulas arrojadas tem obras duma
delicadeza notável) fizeram trabalhos de humorismo, de blague. Essas obras, onde a parte confusa e enigmática parecia uma
sátira à compreensão do grande público, acabaram por a este irritar. As pessoas
que se consideravam de bom gosto e cujo
convívio com as obras de arte consagradas lhes permitia falar com certa
autoridade sobre todas as manifestações artísticas, viram-se dum dia para o
outro inibidas de emitir opiniões sobre os trabalhos dos chamados «modernistas»,
que não só alteravam toda a estética oficial como davam ao assunto um carácter
quase indecifrável.
- Estão a brincar connosco ! - diziam - É impossível que este manipanso
seja um homem e que estes traços signifiquem uma arvore !
Depois, a disposição dos planos, geralmente intercepcionados, e a
distribuição angular da luz, característica especialmente no cubismo, levavam
os grandes públicos a revoltar-se contra essas manifestações artísticas, cuja
compreensão resultava para eles deveras difícil.
- Estão a brincar connosco - voltavam a afirmar - Fazem essas bizarrias
para encobrir a falta de talento, para esconder a orfandade que os inibe de
realizar como os grandes mestres !
Ora, embora estas afirmações não correspondam totalmente à verdade,
porque hoje ninguém já duvida de que um Picasso, um Moreau e um Braque sejam
grandes pintores, o certo é que muitos dos artistas da vanguarda cultivam
especialmente a blague pictural, a
blague literária, a blague
escultórica.
O "ABC" de
23/12/1926, fala sobre "A Caricatura nos Primitivos" (assinado por Z):
Hoje que a evolução da arte plástica
reconduziu para uma apreciação de simplicidade as produções dos artistas
modernos, hoje que o sentido caricatural das produções do continente africano é
copiado, imitado e estilizado por grande número de artistas, parece-nos útil
fazer um rápido exame aos ingénuos feitiços
negros.
Quando o nosso olhar tropeça inesperadamente com um feitiço negro, a primeira impressão é de
surpresa como ante uma forma conhecida desvirtuada por um vidro com defeito,
mas um exame atento modificará esta apreciação, fazendo ressaltar o espírito
caricatural da escultura negra...
Por mais primitiva que seja a produção, por mais baixo que se encontre
na escala humana, a linha é sempre real, a apreciação visual é sempre perfeita.
Quanto é interpretação raras vezes deixa de ser caricatural, no mais
estrito sentido da palavra, num curioso exagero de detalhes.
Não nos parece, pois, que a estilização negróide corresponda a uma
impossibilidade de execução plástica da parte dos artistas, mas sim a uma
tendência natural, aliás justificada pelo feitio ingenuamente trocista da raça
negra.
E permitimo-nos afirmar que a forma caricatural que os negros emprestam
às suas produções, significa um critério de manifesta superioridade artística
sobre a produção realista das primitivas cópias toscas e hesitantes da imagem
observada, tal como as renas gravadas nas cavernas.
O sentido da caricatura não pode aparecer na arte sem uma elevação
relativa de apreciação, sem uma observação comparada, fruto de um raciocínio
mental.
A raça negra se não realizou o monumento, a isso se opôs certamente a
sua natural indolência, soube vincar contudo na composição do ornato e na
pequena escultura um sentido artístico de um grau notável.
Hoje que se conseguiu um pouco, despir a arte do complicado arsenal de
detalhes, ornatos e enfeites dum realismo pretensioso, não seria mau observar
com atenção a obra dos primitivos, em cujas linhas, simples, ingénuas e livres
de influencia das academias, transparece tantas vezes a verdadeira beleza da
forma.
A 1 de Março de 28, o mesmo
"ABC", publica um estudo sobre o "Humorismo e Modernismo",
trabalho não assinado, mas que comenta:
O nosso tempo, tempo considerado sob o ponto de vista estético, bem merece o
epíteto de «idade da caricatura».
Numa reacção violenta contra o formalismo neo-romantico e
pseudo-realista, o sentido estético contorceu-se numa epilepsia jazz-bandesca e
desenhou, em traço caricatural, a forma das coisas.
E esse traço caricatural,
exagerado e insolente, envolveu todas as artes, vincou fundamente o seu
gargalhar nas coisas do séc. XX. O Jazz-band é uma caricatura da música, é uma
paródia embriagada ao ritmo, é um escarneo inteligente.
A pintura cubista, impressionista ou intercecionista não é mais que uma
caricatura da forma, vistas as cores através de um prisma de dispersivo e
baralhador. A própria caricatura, tal como a realiza Zina Wassilieff, é a
caricatura da caricatura, é o riso do riso, é uma ironia construída sobre
ironias. A idade moderna ri-se de tudo, ri-se dela própria.
A idade moderna não quer ser romântica, a idade moderna não quer
escravizar-se aos ídolos, a idade moderna só conhece uma verdade, a de que
todas as coisas são cómicas, e de que o burlesco existe em toda a parte e que
esse burlesco é tão digno do mármore como a carne da Vénus de Milo.
O feio, o ridículo, que os
nossos avós buscavam esconder com tanto cuidado, e com tão ferozes precauções,
que esse mesmo ridículo se vingava neles, cobrindo-os com o seu manto de guizeiras,
esse mesmo feio, esse mesmo ridículo, é hoje posto nas vitrinas, é hoje
estilizado com o mesmo carinho que outrora se votou ao belo.
Mas, o feio não passou a ser bonito pelo facto de ter conquistado o
direito de cidade, e os seus próprios criadores se riem dele, desapiedados,
sépticos e insolentes.
O burlesco sábio, investigado, detalhado, analisado como uma preparação
microscópica, invadiu tudo, tornou-se regra no meio do desregramento.
No teatro, a peça de tese, o drama solidamente construído foi varrido
pela peça de profunda pesquisa psicológica, pelo estudo sapiente das
inquietações mais íntimas da alma, peças tão profundas, tão sábias que o
público hesita longamente entre as lágrimas copiosas e as gargalhadas sonoras.
Caricaturas ?
Sim, caricaturas, mas o que são as caricaturas senão visões ampliadas,
corpos de museu em que certos detalhes se exageram, se desdobram para fora do
corpo, como as vísceras em que estudam os alunos no teatro anatómico.
Tanto se pode rir diante de uma boa caricatura, como chorar se ela for
verdadeira.
Não será audacioso escrever que a idade da caricatura precede sempre um
período de arte equilibrada, porque também os primeiros homens antes de
firmarem a sua visão em linhas correctas, caricaturam, desenharam figuras de
duas cinturas, como que numa pesquisa das linhas verdadeiras, primitivas,
basilares, aqueles dois ou três traços que, constituem o ovo de toda a figura
existente. A idade moderna, caótica, ébria de movimento, convulsionada pelas
suas máquinas estrídulas e potentes, perdeu o equilíbrio artístico do século
passado, quebrou violentamente o molde das concepções, e procura modelar a sua
própria ideologia em formas novas. Idade de pesquisa, idade de ensaio, a nossa
época está votada às mais audaciosas tentativas, às cristalizações mais
paradoxais, mas um dia virá, não muito longe, certamente, em que dessa pesquisa
surja uma cristalização fulgurante, a nova arte.
Existe uma consciência de que
não só mudou a forma de olhar a arte, como de olhar o humor e a caricatura. Este
século entrou em ruptura com todos os conceitos passados, e a própria
caricatura ganhou corpo de expressão estética maior, já que graças a ela, o
artista rompia os horizontes da visão, da expressão, da deformação e
irreverência criativa. Se no início essa ruptura não tinha consistência
conceptual, e teórica, será neste virar de uma nova época, a chamada época
"folle", que a consciência se assume em escritos, em teorizações.
Era um momento de reflexão
que se corporizou no I Salão dos Independentes, em 1930 (Maio), e onde se
reuniriam as diferentes gerações de Modernistas de arquitectos, escultores,
pintores, desenhadores, ilustradores, designer-gráficos… onde surgem nomes como
Ernesto do Canto, Diogo de Macedo, Jorge Barradas, Almada Negreiros, Cunha
Barros, Menezes Ferreira, Bernardo Marques… que já vinham dos Salões de
Humoristas e Modernistas.
Infelizmente, esta
conceitualização, esta consciencialização será também o fim de um período
áureo. Separando-se os géneros, castrando-se as irreverências, a caricatura aos
poucos será, de novo encurralada no seu "gueto"
plástico-jornalístico.