Friday, May 15, 2020

História da arte da Caricatura de imprensa em Portugal (1928) por Osvaldo Macedo de Sousa


1928

Já que o "Sempre Fixe", essencialmente pela pena de Francisco Valença é o principal denunciador iconográfico da censura nestes anos da ditadura do Estado Novo, podemos contar uma das “estórias” anedóticas da Censura.
O "Sempre Fixe" tem como símbolo no cabeçalho o ardina criado pelo Stuart. Mais concretamente o sempre fixe é o ardina. Esta personagem, ou profissão criada para fazer chegar a todo o lado os jornais, para distribuir as boas e más novas era exercida essencialmente por jovens, com força para correrem por toda a cidade (ficou célebre a imagem do ardina fugindo à polícia por causa de "A Marselheza" e de "A Corja" do Leal da Câmara). Eram jovens, provenientes dos bairros pobres, que desta forma tentavam equilibrar a mísera economia caseira. Naturalmente andavam descalços, como todos os pobres citadinos e rurais. O "Sempre Fixe" do cabeçalho do jornal com este nome vem naturalmente descalço, como acontecia na realidade do dia a dia. Mas, em Setembro de 1928 o regime ditatorial, numa tentativa de esconder a pobreza, a miséria impõe uma série de leis de "civilidade", e uma delas era a proibição de se andar descalço: Morreu o Pé Descalço, Que a bota lhe seja leve!
O "Sempre Fixe" evidentemente parodiou a iniciativa, e ao ardina do cabeçalho são-lhe colocadas umas botas gigantescas, mal sabendo que em breve sofreria também as consequências. A censura, em nome da moral, obrigou a calçar o "Sempre Fixe" do cabeçalho do jornal. Não será com as botas, antes com umas sapatilhas de pobre. Stuart parodiará esta imposição, pondo um tipógrafo a interrogar-se se a bota também era para compor (não de arranjar a bota, mas de composição tipográfica…)
Voltando a essa figura de o Ardina, que inspirará páginas cheias de carinho ao Mestre Stuart, e outros mais, vou transcrever uma homenagem do "Sempre Fixe", publicada a 20/10/1927 (com ilustrações de Jorge Barradas):

Garotos Nossos Amigos
Deixem rir os «Sempre Fixes»
O Ardina é um Símbolo

Vocês já viram nesta terra de madraços gente que mais labute do que os «Sempre Fixes» dos jornais ? Essa garotada sem eira nem beira que anda por ahi a vender as folhas na gandaia barulhada das ruas, exemplo vivo de trabalho que dispõe bem, vergonha constante da chateza que define a neurastenia snob da nossa idade?
Podem procurar à vontade, que não encontram, nem mais completo nem mais perfeito. O ardina é um símbolo; o ardina é o «Sempre Fixe» da vida lisboeta, como nós somos os «Sempre Fixes» da vida nacional. Uns e outros constituímos, por muito que os gatos pingados das atitudes graves resmunguem o contrário, o contra-veneno indispensável da chorinquice do nosso tempo.
- São coisas muito sérias! Não vai a maré de feição para brincadeiras e risos! - sentenceiam os senhores conspícuos dos cafés, a futurar desgraças na roda viva dos agouros e na pasmaceira dos boatos segredados.
E a gente desata a rir à gargalhada; e os ardinas, que são cá da confraria, desatam a rir também, de tanta sisudez, que mais não seja para reduzir à sua justas proporções a pose funerária dos basbaques.
/…/ Como querem vocês, em boa verdade, que se tome a sério esta enorme chuchadeira, se nós já chegamos ao ponto de ter de considerar o Pinheiro maluco como o homem mais sensato desta terra?  O que lhes falta a vocês todos é precisamente o recurso de saber rir como riem e brincam os ardinas; e a coragem de trabalhar como eles trabalham, de sol a sol, fazendo da vida um moirejar que não cansa, fazendo da alegria um estímulo que nunca mais fraqueja.
Então sim, que eram todos «Sempre fixes», e isto levava uma volta para a banda da prosa séria.
Até lá, tenham paciência, mas creiam que não é com o vosso verso, por muito que o ageitem e alambiquem, que vocês metem a geringonça nos eixos.
Procurando a vida num esgar constante de riso e sátira, mantêm-se os caricaturistas na sua labuta, desaparecendo uns da cena, surgindo outros, assim como evolui a própria forma de olhar o humor, apesar deste se manter igual a si próprio desde o início da evolução do homem. O olhar, a miopia, o estigmatismo é que variam.
Gualter Cardoso em prefácio para o catálogo da exposição "Caderno de Apontamentos de Tom", apresenta-nos um dos mais curiosos textos sobre a arte do humor gráfico: A caricatura é a expressão de crítica do desenhador. O lápis é o caleidoscópio do imprevisto, a síntese da característica, e as características residem em traços, em delineamentos fisionómicos: - os ângulos do cinismo, as curvas da bonomia, a linha quebrada ao histerismo, o sólido da estupidez; concorrentes estas, à focagem da silhueta dum indivíduo. A caricatura é uma arte, por ser arte e ser crítica. A crítica é a expressão dupla da arte, porque tem de ser superior aquela que a critica foca, como o mestre para um discípulo. Derruba construindo e, como diz Mario de Saa, é mais difícil destruir que construir. A expressão destruir implica a ideia de anular alguma coisa concorrendo numa outra que de superior inferiorize a segunda. Depois uma caricatura quer dizer 36 graus e meio, boa cor, optimismo e negócios em maré calma. O caricaturista é saudável, contador de anedotas e espírito folgazão, e em Portugal há casos de 80% de tuberculosos. Os médicos deviam medir a sanidade dum país, pelo número em estatística, dos seus humoristas. O caricaturista é ainda o químico da vida moderna. Sintetiza em traços o século XX. Restringe-o, simplifica-o: compõe-no. É o telefone, o automóvel, o relógio, o tremendo relógio, os tremendos minutos e segundos que constituem a vida actual, vertiginosa jazz-bandesca . Vida a 80 HP. O riso - sem a exploração scientifica de Bergson - é a expressão saudável da vida moderna despreocupada; a caricatura: o riso metálico dum bobo, século XII pendurado no lápis endiabrado de Marinétti.
Tom era um jovem brasileiro, de nome Thomaz de Mello (Rio de Janeiro 1906, Lisboa, 199  ), neto de um dos pioneiros da publicidade em Portugal que emigrou para o Brasil. Tom seria pesquisador da Amazónia, cenógrafo, actor… até que chega a Lisboa em Dezembro de 1926. Em breve fez uma exposição de caricaturas, o que o lançou de imediato no meio artístico. Ele, que estava de passagem para a Europa, aqui ficará para toda a vida.
Segundo palavras suas, recolhidas pelo autor deste livro, a caricatura era dominada por Amarelhe e Valença, e eu vim fazer a caricatura síntese que já existia no Brasil, mas que aqui era novidade.
Talvez fosse essa a sensação na altura, mas hoje, vendo o que se fazia nos vários jornais de então, não podemos aceitar esta perspectiva, já que a síntese sempre foi uma característica do nosso modernismo, e momentos houve que essa síntese foi abstraccionista, como será a de Tom. Inclusive, a síntese Brasileira foi uma escola desenvolvida sob a influência do português Correia Dias.
Tom foi bem aceite porque trazia uma nova força ao modernismo, e com ele se desenvolverá, não por influência, mas paralelamente uma nova reequacionamento gráfico, onde a presença do recém-chegado artista suíço, Fred Kradolfer, terá um papel importante. Nessa reorganização do Design Gráfico humorístico estão nomes como Carlos Botelho, José de Lemos, D. Fuas… e  Teixeira Cabral.
Voltando a dar ouvidos a Tom: Depois veio um rapaz do Funchal que era um curioso e foi meu discípulo. Teixeira Cabral era por vezes muito mecanbúzio, mas perdeu-se na boémia e no vinho. Era uma pessoa sem persistência. Pessoa boa, um ilhéu muito desprendido, mas nunca teve ânsia de se aperfeiçoar.
Teixeira Cabral gostava de ouvir as minhas ideias e como eu interpretava a caricatura. Estava sempre atento, e procurava-me todos os dias. Quando não aparecia, escrevia. Tinha muita graça, era franco, gozava com o que fazia. Ele seguiu a minha linha de caricatura síntese.
Thomáz de Mello não só dava um novo impulso ao modernismo sintético, como liderará um movimento ligado ao novo design publicitário do regime, com decoração dos Pavilhões em diversas Feiras Internacionais. Será também ele que, com António Pedro abrirá a primeira galeria de arte comercial, a U.P., especializada em arte moderna.
Tom pertencerá à geração da "política de espírito", um movimento cultural implantado por António Ferro, onde agrupou os artistas nacionais, principalmente os ligados ao modernismo, e com eles criou uma imagem estereotipada do regime, em estética vanguardista. Uma imagem falsa do país, mas que serviu perfeitamente, durante algum tempo ao ditador, já que mais tarde não só "destruirá" António Ferro, como cortará as veleidades irreverentes do modernismo, ganhando, como sempre o conservadorismo.
O humor, naturalmente não estava incluído nesta "política de espírito", pois tinha elementos demasiado subversivos e perigosos para o regime, mas dentro desse movimento cultural trabalharão diversos humoristas como Almada, Barradas, Soares, Botelho, Tom…
O Modernismo, apesar de nos últimos anos se ter concentrado no sul, manteve no norte a sua chama de irreverência, e em 1929 surge um novo grupo, que apesar de abarcar todos os géneros criativos, teve também expressão no humor. Esse movimento, ou Grupo, denominou-se "Mais Além", e realizou a sua primeira exposição em 1929 no Salão Silva Porto (do Porto). Adalberto Sampaio, pela sua postura coreográfica, estilística e plástica, foi figura de relevo nessa irreverência nortenha, em que a criação humorística predominará. O Grupo não passou dessa exposição, mas Sampaio assumirá a continuidade, assume o nome do grupo como pseudónimo, e ao longo doa anos defenderá esse grito de irreverência, calada pelos outros membros. As suas primeiras obras humorísticas surgirão no "Maria Rita"…


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