Sunday, May 03, 2020

História da arte da Caricatura de imprensa em Portugal (1926) por Osvaldo Macedo de Sousa


1926

Há datas que marcam a história. Nesta História da Caricatura, o aparecimento de um novo artista irreverente, ou o início de publicação de um novo jornal humorístico de qualidade é sempre importante, contudo há momentos especiais.
No período que abarca este volume, foram especialmente marcantes os Salões dos Humoristas e o aparecimento de um jornal baptizado com o nome de "Sempre Fixe". Sem desprimor para muitos outros, como "A Sátira", "A Rajada", "Papagaio Real", "Riso da Vitória", "ABC a Rir", "Espectro"… o "Sempre Fixe" é um marco pela sua qualidade de humor, pela profusão de colaboradores, pela sua tenacidade de espírito livre e humorístico perante os anos negros em que teve de sobreviver. Aqui reunirá a nata dos clássicos, assim como lançará os jovens. Dará espaço aos académicos, como incentivará os modernistas. Á sua frente estava Pedro Bordallo Pinheiro, um sobrinho do Mestre Raphael (filho do irmão Thomaz), que esteve sempre ligado à imprensa, tendo sido um dos fundadores do "Diário de Lisboa", e depois de "O Sempre Fixe".
Apareceu nas bancas a 13 de Maio, e na segunda página surge este editorial: Há uma cousa que a gente pode garantir: é que este semanário é para ser lido sempre. Por isso ele se chama Sempre fixe.
Já ninguém lê o Notícias, o Correio Ilustrado, o Século, antigos. Nem se lêem nem se arquivam. São cousas muito sizudas. Mas uma colecção da Paródia, que o Deus da graça e da inspiração guarde pata todo o eterno, arrecada-se, e - como azeite - é ouro.
Sempre fixe é um jornal que não tem pretensões a fazer rir a humanidade, assim como um drama. Nada de fazer levar as mãos ás ilhargas. Apenas bom humor, boa disposição, não agredir ninguém, não melindrar - e quando suceder, pede-se logo desculpa - , crítica inofensiva, desejos de ser muito engraçado ( e a boa intenção é tudo) - eis o nosso modesto objectivo.
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«Quem não for capaz de ser pobre não é capaz de ser livre», dizia o velho, o decrépito Hugo. Quem não for capaz de ser alegre não é capaz de ser feliz - dizemos nós.
E não há cousa mais grave e séria desta vida que não dê o flanco ao bom humor. Menos um enterro. E por muito que o queiram os optimistas da nacionalidade, isto não é ainda um préstito fúnebre. Não é, nem será.
Os senhores sabem a história do homem que no dia 6 de Janeiro ia para uma festa, muito bem enfarpelado de fraque, e chapéu de coco, com um bolo rei, próprio do dia de Reis, quando foi prevenido de que morrera o seu vizinho Malaquias ?
Não sabem. Pois foi ao enterro em vez de ir para a festa. E fez conduzir, à laia de coroa, na ponta dos dedos, o bolo rei. Mesmo que amanhã, sob o ponto de vista político e social - casos pessoais à parte - haja um acontecimento que esteja a cheirar a defuntos, nós iremos, de bolo rei.
Rir, fazer rir, ter pelo menos a intenção de estar bem humorado - é o propósito deste semanário.
Uma boa piada desconcerta o ambiente mais pesado. Por exemplo: há dias, nos Deputados, o sr. Ramada Curto, declarando ao sr. Cunha Leal, que é beirão, que o seu sotaque, dele Ramada Curto, era do Cartaxo, logrou dispor bem o adversário, fazer rir a Câmara, dar à oposição tempo para pensar se valia ou não a pena partir mais carteiras - e salvar uma crise política.
E isto só com uma piada do Cartaxo.
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Deixemo-nos de enterros. A politica tem muita graça, o teatro está engraçadíssimo, as artes e as letras valem um tesouro de Demócrito, as cousas do sport e dos touros, do mundanismo e da vida social, são de fazer chorar as pedras.
Ah! Nós bem sabemos que isto está mesmo uma desgraça! Mas, com franqueza franca, se procurarem bem sempre hão de encontrar alguma face simpática, no meio dessa desgraça toda.
«Sempre fixe» pretende resistir à tristeza contemporânea. Fazendo rir? Se Não puder ser, ao menos evitando as carpideiras com que todos andam apostados em denegrir a nossa querida existência social.
A Rua vale um tesouro. Aqui não há filosofia. A Rua é que sabe estar «sempre fixe». A Cidade é «gavroche». As cousas sérias têem o seu lugar; está bem. Não lh'o tiremos. Esteja sério quem quizer, mas sorria quem não tenha ainda a seriedade perdida de todo.
Uma velhinha que nós conhecemos, e que por acaso era nossa Avó, sabia emprestar às cousas mais sérias da sua vida, que foi a de uma geração já multiplicada como a dos pombos dos pombais familiares, o melhor sorriso, e até a melhor gargalhada de um século inteiro de românticos piegas. E a nossa Avó era de 1830.
Vamos ao caso: homens de génio, homens de talento, homens de circunspecção; acontecimentos graves, acontecimentos sérios, acontecimentos terríveis - ah! ah! ah! deixem-nos rir ! - tudo isso está a pedir uma injecção de bom humor.
Toda a vida portuguesa gira à roda de um «Diário do Governo», da primeira, segunda e terceira séries.
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Vamos a traduzir este «Diário do Governo» para português, um português que se entenda - e que dispense o dicionário dos modernos palavrões defectistas. Que nos assistam os manes de Rafael Bordalo e de João Rimanso.
E se for pedir muito, que nos valha, ao menos, a graça popular, colhida um pouco em toda a parte, e o desenfado com que o povo das ruas, no manancial da sua chalaça, sabe não tomar a sério a seriedade convencida dos que pretendem levar, como às crianças, como caras feias.
Nunca foi tanto preciso rir e sorrir. Não por descrença, mas por confiança.
Assim - Sempre fixe.
Infelizmente este ano também é uma data especial para a História Geral de Portugal, porque passados quinze dias após o aparecimento deste jornal verificou-se mais um golpe de estado. O país já estava habituado a eles, e os políticos viviam na sua expectativa para se revezarem no poder, num rotativismo de quezílias mesquinhas, de política caseira misturada com turbulências de foro internacional que estavam a alterar o mapa social e geo-político do planeta. Contudo este golpe militar, chefiado pelo General Gomes da Costa não seria mais um, mas o Golpe que faria sucumbir a Primeira República.
Diversas foram as figuras que marcaram este regime, como Brito Camacho, António José de Almeida, Bernardino Machado, João Chagas, Machado dos Santos… figuras que foram ícones permanentes da caricatura destes anos, contudo Afonso Costa dominará sempre acima de todos eles.
Atacado pela frente e por detrás, pela esquerda ou direita, por republicanos ou monárquicos, Afonso Costa foi o político da alternância em espadas e valetes, um dia os militares, outros os civis, um dia um golpe de bastidores, outro dia ele, num vaivém que foi o fomento da República - o grande truc é este: encher os alcatruzes à custa do Zé e habilitar a Margarida (Costa) a jamais faltar com a lavadura na celha dos históricos (Castro Lys in Papagaio Real 1914). De todos foi o que se manteve mais tempo na governação (como chefe de Governo e como ministro em várias pastas), e se ele não cumpriu todas as promessas republicanas, não conseguiu a estabilidade política, dirigiu como pode esta nau sem velas e remos. mas muitos capitães, e quem estiver isento de culpas, que lhe (à República) atire a primeira pedra (Stuart, in Sempre Fixe, 1930).
Ao longo destes 26 anos houve 45 governos constitucionais (para além do Provisório), tendo o período de Maio de 19 a Janeiro de 22 o mais conturbado com 14 governos empossados. Houve diversos períodos de ditadura, de regimes mais à esquerda, mais à direita, dominada pelos militares, dominada pelos civis… Contudo, se os republicanos tinham razão nas suas críticas aos partidos da monarquia, quando eles se formaram em partidos caíram nos mesmos erros, nas mesmas divisões, nas mesmas lutas intestinas. Era inevitável um novo golpe de estado, não se sabia para que lado.
Esta indefinição está bem patente nesta poesia editada no "Sempre Fixe" de 10/6/26, e assinada por João Formiga: CEGA-REGA DA REVOLUÇÃO C0STISTAS - /…/ Republicano, bombista, / Assanhado lealista, / Iconoclasta, anarquista, / Zaragateiro esquerdista, Conselheiro socialista, / Destruidor bolchevista, /Conservador monarquista, / Falecido sidonista, / Adesivo ou arrivista, Até mesmo nacionalista, tudo vai, tudo se enquista / No movimento altruísta / A ver se apanha uma posta, / A Ver se come da alpista.
O povo só quer um Costa. / Se é Afonso não desgosta, / Mas se é Gomes também gosta. / Em se dando um vivo a um Costa / Nunca fica sem resposta, / Que ambos eles dão alpista, Que ambos dispõem da posta. Por isso eu cá sou costista!
Em Dezembro, no Porto surge de novo uma exposição colectiva apelidada de Salão dos Humoristas Portugueses. Composta por obras de alguns profissionais, ou futuros profissionais, com participações de todo o país, o qual poderia ser encarado como o II Salão dos Humoristas do Porto, V Salão dos Humoristas Portugueses, ou VI se contarmos com o dos Humoristas e Modernistas de 1915. Só que eles não reivindicam passado, apenas o presente com a participação de António Brito, Alberto Calderon Dinis, A. Cruz Caldas, Armando de Jarmelo, Silva e Sousa, Carlos Botelho, Carlos Carneiro, Carlos de Castro Ribeiro, D. Fuas, Emmérico Nunes, Helena de Bourbon e Menezes, José Rodrigues Brusco Júnior, Menezes Ferreira, Maria Noémia Silveira d’Almeida, Octávio Sérgio, Ricardo Spratley, Roberto Nobre, Serafim Rodrigues, num total de 106 peças de 18 artistas. Emmérico Nunes continua a ser um elo de ligação entre os Salões (apenas três tinham participado em Salões anteriores), onde vimos surgir novos artistas que marcarão as nossas artes humorísticas, como o Carlos Botelho, D. Fuas, Cruz Caldas, Octávio Sérgio...
A imprensa pouco reage a este evento, preferindo ignorá-lo já que outros problemas sociais e políticos eram mais importantes ? Por exemplo o "Primeiro de Janeiro" dá apenas uma pequena noticia na quinta-feira anterior, referindo a inauguração do Salão no Sábado, e relatando os nomes dos artistas representados. No Domingo publica uma foto da sala, dizendo que se vê três dos artistas representados (não consegui ver).
Por "A Montanha" (18/12/1926) acabamos por saber que foi graças ao esforço de D. Fuas que se realizou a iniciativa, e este jornal acaba por dar algum destaque, crítico, através de um artigo assinado por Guedes d'Amorim: Eu fui, a fora a equipe organizadora do «Salão dos Humoristas Portugueses», talvez o seu maior defensor. /…/ E toda a minha dedicação, todo o meu apoio, inspiravam-se na consiste energia que, D.Fuas, seu pertinaz organizador, desenvolvia. Impunha pelo seu domínio de obstáculos. Eu, por isso, tive o brado leal das minhas frases a todas as alturas. /…/ A minha defesa cessou, porém, desde o dia da sua inauguração.
/…/ Quando, num abraço de olhos, cumprimentei a grande exposição de quadros, a sorrir como bom policromo aspecto, pareceu-me, também, que as cores sorriam.
E foi a sorrir que principiei a olha-las. Que comecei a ver cada quadro como se estivesse a estudar o corpo duma mulher toilettizada de tintas.
Em frente das caricaturas de D. Fuas, o mais glorioso caricaturista português, eu mantive o mesmo véu de alegria.
/…/ Vou andando… A primeira desgraça, aniquila o meu sorriso. Os trabalhos péssimos de Cruz Caldas foram os autores dessa aniquilação. Não teem proporções. Tentou a aguarela e o desenho sem saber desenhar. Diante de duas interessantes caricaturas de Botelho recuperei o meu generoso «sorrir». É pena não ter enviado mais trabalhos Lino António. /…/ Octávio Sérgio é muito banal e inestético nos seus numerosos quadros. Menezes Ferreira, António de Brito, Carlos Ribeiro, Armando de Jermelo, Silva e Sousa e José Brusco - são os falhados do Salão. Tiveram a imprudência de se representarem em ridículos apontamentos…
/…/ Maria Noémia da Silveira d'Almeida, que deve ser uma fanática leitora dos magazines parisienses, fez um desenho vaporosíssimo no «Foyer». O outro trabalho, «Garçonne», a aguarela, é muito imperfeito. /…/ Helena de Bourbon Menezes, é estrela que brilha com outro fulgor. São seis as suas telas. Perpassa em todas elas uma tal onde de ironia que se definem mesmo sem legendas. /…/ Carlos Carneiro, o pintor das elegâncias, apresenta-se com desenho, óleo e aguarela. Quase brilhante. Calderon Dinis, muito confuso… Jorge Barradas nos quadros a óleo, menos, muito menos artista que nas aguarela. As suas cabeças de mulher, as tocadas de ingenuidade ou de vício, são obras de arte.
O grande êxito, no «Salon dos Humoristas», o grande prémio merece-o Emmérico Nunes. O seu melhor trabalho são todos os seus trabalhos. Impõem-se pela mecânica do seu traço. Pelo cuidado do detalhe. Pintou como é preciso começar a pintar-se em Portugal. Com cores precisas e com carácter idóneo. Forte.
/…/ D. Fuas, cavaleiro do risco, cavaleiro que conquistou para o Porto a honra de um salon pictórico, teve a mais cobarde companhia dos pintores portugueses. Dos desenhistas. Dos humoristas. Faltaram quase todos… Os que chegaram, na maior parte, são falidos. São falidos de talento.
O «Salão dos Humoristas», que tinha probabilidades de ser uma grande parada de paletas novas, modernistas, foi um fracasso… Confesso-o com mágoa. Confesso-o para ruborizar os pseudo-artistas, que, por aí, andam a gritar os valores contemporâneos. Resumiram-se… Lisboa, talvez, por receio, por receio de confrontos, respondeu debilmente ao generoso convite do distinto D. Fuas. Ficou em casa… D. Fuas convidou-a. Intimou-a a comparecer. Lisboa, para de futuro, não poder dizer que além de Barradas, de Emmérico e de Helena Menezes, possui mais pintores. Tem, porém, o direito de dizer que tem imensa cobardia…
Após esta data encontramos de novo um vazio de iniciativas de grupo, de “sindicalismo” ou associativismo humorístico. O individualismo continua a dominar, reunindo-se apenas de tempos a tempos, à volta de efémeros projectos jornalísticos.
Figura impar do humorismo português, não só pela obra vasta e diversificada, mas também pela sua vida cheia de misticismo boémio, de 'estórias' anedóticas é Stuart Carvalhais. Profissional do traço, com um alto poder de improvisação técnica e estética, que mesmo sendo um artista reconhecido de imediato pelos colegas, e pelo meio jornalístico, nunca deixou de viver quase sempre na miséria. Por um lado, porque a profissão sempre foi muito mal paga. Por outro pelo seu total desregramento económico, pela sua boémia existencial. Os outros artistas também passavam mal, desde o grande Almada que teve de viver em casa de  amigos, sustentado por eles. Outros como Valença, Alonso, Leal da Câmara… tinham uma segunda profissão que lhes dava o sustento assegurado. Stuart foi não só humorista de imprensa, como ilustrador de artigos de revista, de livros, capista de livros, discos e partituras de música, cenógrafo, criativo publicitário, cartazista, pintor, decorador de stands…
Stuart nunca soube regrar as economias, quando tinha muito, desperdiçava, quando não tinha, vendia ao desbarato a sua obra. O alcoolismo foi um dos seus problemas, e neste ano vamo-lo encontrar na Casa de Saúde de Idanha, e depois do Telhal para desintoxicação alcoólica. Por diversas vezes os médicos lhe proibiram o álcool, e nessa infelicidade ele dizia que já não era o Stuart Carvalhais, mas o Stuart Carvalhelhos…
Reinaldo Ferreira, na "Revista Portuguesa" retrata-o assim: Stuart é, antes de mais nada, um caricaturista e um desenhador das cidades; um fotografo sensual dos flagrantes da rua; o artista que sente, com a mesma ternura, com o mesmo sorriso, a dor que se envolve em andrajos e a beleza que se filtra como o sol através as mousselines e as meias de seda - e que espreita pelos decotes. Ele é o surprehendedor ansioso dos corpos femininos que desabrocham; das mulheres que florescem; das crianças; dos seios que se inclinam; das puberdades que troteiam exuberantes de promessas e desafiando os sátiros…
Mas Stuart é também um profissional, e os seus lápis, a sua imaginação, os seus dedos, feras domadas, obedecem-lhe às cegas, tontos de medo, rápidos. É vê-lo trabalhar, improvisando em todos os géneros, rápido, fumando uma ponta a um canto da boca, a guedelha seca, mal penteado, o olhito vivo, irrequieto, a pele arruivada a colorir-se no esforço da precipitação - o lápis correndo, gerando sobre a brancura do papel, rostos de mulher para uma capa do ABC, uma fantasia para um livro; um cartucho de bombons para um cartaz; uma caricatura engenhosa e com chiste, para qualquer diário…
/…/ -  Há dezoito anos que almoço desenhos; que janto desenhos; que visto desenhos…
/…/ Stuart Carvalhais, artista porque sim, artista dos melhores da nossa terra, suicida-se aos poucos, na boémia desordenada da sua eterna mocidade, na eterna embriaguez da sua garotice… Mas quem nos diz a nós, que se ele deixasse a sua boémia e a juventude irreflectida - fosse o grande artista que é ? Sabe-se lá nunca onde nasce o talento e que gérmen o fecunda…


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