Saturday, April 18, 2020

História da arte da Caricatura de imprensa em Portugal (1923) por Osvaldo Macedo de Sousa


Em verdade, o mundo já não ri como dantes, - queixa-se Aquilino Ribeiro, na "Ilustração" (Maio/27), falando sobre o Sentido Moderno do Riso - zigomáticos retesados e cada pançada, que até era proverbial dizer-se: ia morrendo a rir. O homem moderno não ri: sorri, e não é pequena a condescendência. Cada um traz dentro de si uma tragédia, em plena representação, ou um problema a apoquentá-lo, e passa alheio aos ridículos e bufonarias dos outros. Diz Bergson que o homem ri quando se encontra em situação de preeminência sobre o seu semelhante. Quem gratuitamente, se preocupa ainda com o seu irmão ?
Com a nova mentalidade e a nova moral, o homem é flecha no seu caminho. Não tem ocasião de ver onde põe os pés; não olha aos lados; não se distrai; lá vai levado pelo instinto, ou, porventura, um pouco sonâmbulo. Cada vez vive mais recolhido no seu eu. Toda essa actividade, essa lufa-lufa, esse atropelamento de tudo e de todos, são sinais manifestos do seu crescente egoísmo. Para que se possa rir, é preciso ânimo airado e ociosidade. O homem de hoje carece de tudo isso. Se alguma vês ri, a sua risada é sarcástica e representa um desquite; ou é irónica, de lástima fingida, e serve-lhe para mandar bugiar um pândego. Esse cidadão altruísta, difuso, meio Falstaff, meio Sancho-Pança, que só com abrir os lábios punha um auditório à gargalhada e que, além disso, não perdia uma ocasião de rir, acabou para nunca mais. Há ainda quem ria sozinho, ao desfastio, e dispõem esses duma felicidade rara. Há ainda quem faça rir, ou pretenda fazer rir porque disso assentou praça. Por virtude própria, por humanidade, por devoção altruísta, ou pura especulação do espírito, já ninguém ri.
/…/ Os artistas do humor abandonaram o seu santíssimo e salutar mester. Em compensação passaram a observar com fiel e inteligente demora os gostos, tendências e estilos da humanidade que subiu para o galarim. Mereceram-lhe particular desvelo as danças novas, com suas atitudes e desconchavos, e as garçonnes com as suas manias e toleimas. Mas daquela piedade que Steilen punha em tudo, e daquela amargura que se evolava do lápis de Gavarni, nem sombra. Os humoristas parecem conformados com o mundo que vai passando.
Também Stuart Carvalhais dirá : Vocês sabem lá o que eu sonho às vezes o que quisera realizar! Mas não posso! A vida não deixa! Sou um profissional. Um lamento à "Revista Portuguesa", que documenta paralelamente as dificuldades de sobrevivência, estética e monetária dos artistas de então. Os artistas tinham que se submeter aos gostos dos editores e do público.
Nesta década de vinte, Alonso será um dos caricaturistas dominantes, já que é dele a primeira página do jornal "Os Ridículos", jornal humorístico que continua a resistir ao tempo, aos regimes, às dificuldades económicas… Foram precisamente estas últimas que afastaram o caricaturista dominante dos anos dez, Silva Monteiro. Ora se não havia dinheiro para pagar aquele artista, como havia para pagar a Alonso? Só se este trabalhasse gratuitamente! A realidade é que a partir do verão de 1920 a assinatura de Alonso dominará neste jornal. Contudo já anteriormente, e esporadicamente surgiam trabalhos seus em "Os Ridículos". Uma das particularidades deste jornal, principalmente com os desenhos de Alonso, é a grande relação que existe entre o desenho e o texto, ou seja muitas das vezes o desenho perde grande parte da sua leitura sem a grande prosa humorística da primeira página, que era do Caracoles, o director Magalhães Cruz.
Joaquim Guilherme dos Santos Silva, como era o verdadeiro nome de Alonso, e com cujo nome de tempos a tempos assinava, nasceu em Lisboa 1871, e será Professor da Escola António Arroio (daqui poder trabalhar gratuitamente, ou com um ordenado simbólico). Surgindo como republicano durante a monarquia, a meados de dez já surge como monárquico em "O Thalassa", e em "Os Ridículos" não poupará todo e qualquer governo.
Iniciou a sua carreira no início do século em "O Passatempo" (1900/4), "O Arauto" (1901/2), "A Paródia", "Os Ridículos" (1905/29), "O Thalassa" (1913/5), "O Século", "Jornal do Brasil", "Novidades", "Renovação", "Batalha", "O Dia", "A Luta", "Os Grotescos", "O Palco", "O Espectro", "Os Sports"…
Para além desta actividade como caricaturista, ou como professor, trabalhou no campo das artes gráficas, desenhando anúncios publicitários, capas de livros… Viria a morrer em 1948 no Casal da Portela (Sintra).
Alonso, como Silva Monteiro são os artistas que tentam manter a velha sátira política à moda de Bordallo, enquanto que os outros procuram olhar a sociedade mais nos aspectos do quotidiano, caindo-se por vezes na repetição do gag. Tal como tinham defendido os primeiros Modernistas, como Christiano, os grafismos, as ousadias estéticas desenvolvem-se mais nos jornais não explicitamente politizados. A criatividade nestes meios de comunicação era maior, do que quando os artistas tinham a obrigação de entrar no comentário político, preferindo então a linha raphaelista.
De todas as formas, com o desenrolar do tempo, e o esmorecimento do revolucionarismo republicano, perdia-se a agressividade satírica. Esta apatia crítica contrastava por vezes com a agressividade da vida política, como acontece neste ano. O agravamento dos impostos provocará grande crise económica, grande instabilidade governamental, regresso das bombas e atentados quotidianos.
Artistas que se vão destacando nesta década são António Soares, Bernardo Marques…não tanto pelo seu humor, mas pelo seu traço modernista, que se desenvolvia em grafismos e decorativismos da vida mundana lisboeta.
Em verdes anos, por um acaso maravilhoso, veio-me parar às mãos o "Tratado de Pintura" de Leonardo da Vinci, em latim que li e reli, com o auxílio alheio, para o entender. Estava manifesto o segredo da minha vida. Desta forma apresenta António Soares a razão da sua opção profissional. Natural de Lisboa (18/9/1894), ele pertence à geração de jovens que desenvolveram o modernismo em paralelo com a ruptura republicana. A minha geração começou a ter consciência de si, no período que se sucedeu à proclamação da República. Discutia-se e negava-se abundantemente. Como não podia ficar eternamente na crise do crescimento, assentamos em superar a anarquia em que fervíamos, decidindo-nos pelo passado ou pelo futuro. Interrogamos o estrangeiro e, depois de algumas hesitações, eu e outros rompemos a luta pelo nosso ideal. Lembra-se ainda dos três "Salões dos Humoristas", em 1912, 1913 e 1920 ? Produziu-se escândalo e houve quem nos interpelasse, num áspero tom de censura:
- Então os novos desprezam o traço genial de Raphael Bordallo ?…
Nós não cometíamos tal pecado, mas entendíamos alinhar noutra formação. (in Diário de Notícias de 11/2/1970)
Já em 1914, em "A República" (25/5), ele tinha já tinha chamado a atenção para essa questão - hemos de fazer compreender a esses cavalheiros que Bordallo viveu no seu tempo e nós queremos começar a marcar o nosso. Nessa mesma entrevista, antes já tinha definido o seu programa estético - Atender as necessidades espirituais do povo, comunicando com ele por intermédio de uma arte que fosse a expressão sincera do seu modo de ver é questão que não entrou ainda no programa dos meus colegas, que até hoje teem feito arte que unicamente delicia a vista, sem no entanto ter fim nenhum útil.
E como a falta de observação deste princípio, conduz a uma desorientação que muito prejudica e contraria as suas aspirações, desde que os nossos artistas não sintam com grandeza, as coisas portuguesas e não façam sentir de uma maneira superior o seu lado belo, cairão forçosamente numa assimilação servil, como sobejamente o teem demonstrado.
António Soares foi um humorista por circunstância, como muito dos modernistas, já que essa foi a via de ruptura triunfante com o naturalismo em Portugal. Explorou assim o expressionismo sentimentalista, conjugando com o mundanismo, o qual será o eixo de toda a sua obra. Companheiro de Christiano, Almada… nunca conseguirá libertar-se totalmente das regras apreendidas na Escola de Belas Artes.
No desenrolar dos anos 20 o humorismo deixava de ser necessário como expressão de ruptura, e como sobrevivência única, optando a ilustração, a decoração, a cenografia.
Pintor do mundanismo e da sensualidade, prolongaria no modernismo o sentimento decadentista, numa crise de evolução de um pintor em busca de um modernismo fauve; na recusa do internacionalismo a favor do nacionalismo. No fundo nunca deixaria de ser um modernista em admiração pelo oitocentismo: Quais os seus pintores predilectos? - Columbano, Malhoa, Carlos Reis e António Ramalho, injustamente esquecido, Silva Porto e Pousão. Sinto que eles constituem o valioso escol do genio pictural da raça.
Viria a morrer em Lisboa em 1978.
Bernardo Marques é natural de Silves (21/11/1898), onde fez os seus primeiros estudos, vindo em 1918 para Lisboa para a Faculdades de Letras. O desenho era já uma das suas formas de expressão, mas em Lisboa, com o contacto do Chiado tornar-se-ia numa paixão, onde a obra de Christiano Cruz terá forte impacto.
A sua estreia profissional verifica-se por via humorística no "ABC" (1920 a 22), no "ABC a Rir" (1921/22), na "Ilustração Portuguesa" (1920 a 24), onde a sua presença no III Salão dos Humoristas de Lisboa tem uma marca fundamental de lançamento do artistas.
Prosseguirá posteriormente a sua actividade em revistas e jornais como "O Século", "A Batalha", "Contemporânea", "Sempre Fixe", "Europa", "Diário de Lisboa", "Diário de Notícias", "Notícias Ilustrado", "Ilustração", "Imagem", "Kino", "Girasol"… Mas a sua vertente criativa vai-se marcando cada vez mais para o design gráfico, para a ilustração, para a publicidade, marcando estas décadas com o seu modernismo cosmopolita.
A arte do humor era pois um elemento fundamental da criação estética deste período, não só como forma de ruptura estética, mas também como crítica estética, e curiosamente essa função foi usada fundamentalmente por um dos menos ousados, ou seja por um dos mais académicos caricaturistas - Francisco Valença (com textos de Carlos Simões). Tendo iniciado no final da monarquia uma sátira aos Salões de Belas Artes, caricaturando os quadros e esculturas representadas, em 1914, transformou esse comentário anual num álbum o "Catálogo Cómico" que se manteve até 1919. Nessa altura, por razões económicas foi integrado na Ilustração Portuguesa, depois no "Diário de Notícias", e "Mundo", para em 1923 reaparecer no formato álbum. Diz o prefácio: Para dar e tomar ares de críticos, crava o monóculo na orbita e pega por tudo quanto vê ponta ou ponto… fraco para lhe pegar.
Tem riso, siso e conceito. É justo, não faz de uns filhos e de outros enteados. Toca a tudo e toca a todos. E como toca afinado, eles ás vezes é que desafinam, afinando. O de 1924 reafirma: O monóculo da crítica humorística tornou-se inútil. Para a crítica ver alguma coisa… de novo nas exposições, já não lhes basta a vista armada. É necessário mais: tem de ser a vista armada… e equipada. Á força de pesquisas e de rebuscas, dilatam-se as pupilas, esbugalham-se os olhos, seca-se a boca e sua-se em bica. E. dado o calor da transudação, o monóculo embacia. E quando embacia fica-se a ver… navios em marinhas de há muito vistas. Isto obriga de futuro ao uso da lupa e do microscópio. E então o crítico, para cocar algo, tem de ser um «coca bichinhos».
Ora esta exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes é, sem ofensa para as antecedentes, o eterno e requentado chá de Tolentino. Isto não é dar-lhe chá… das cinco, nem, ás duas por três, fazer crítica de arte a dar-lhe para baixo.


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