Saturday, April 04, 2020

Historia da arte da Caricatura de Imprensa em Portugal - 1922 por Osvaldo Macedo de Sousa


1922

Apesar da imagem do português ser de um povo antes fatalista que com sentido de humor, não foi apenas nas sociedades cosmopolitas de Lisboa e Porto que a imprensa humorística se desenvolveu. E diversas são os exemplos de jornais regionais de cunho humorístico que surgiram ao longo dos anos, ou de jornais regionais noticiosos que usaram o desenho de humor, com trabalhos de artistas de índole nacional ou local. Uma das muitas localidades com imprensa humorística foi Espinho, e faço esta chamada de atenção precisamente para falar de um artista espinhense, Silvaz que aqui desenvolverá uma obra artística de mérito.
Silvaz, ou Silvério Vaz (1896/1965) foi professor de Desenho, Educação Física, Natação, Co-responsável pelo Colégio Nª Srª da Conceição em Espinho, e dirigente  desportivo do Sporting Clube de Espinho. No campo artístico, para além de caricaturista em diversos jornais locais, e de livros de curso, foi ilustrador, grafista, cenógrafo, vitralista (são da sua autoria os vitrais da Igreja Matriz de Espinho)… enriquecendo ao longo dos anos aquela povoação com a sua actividade.
Neste norte em evolução estética, surgem nomes como Carlos Carneiro, ou D. Fuas. O primeiro, filho já de um consagrado pintor (António Carneiro), irmão de consagrado compositor e músico, dedicou-se a múltiplas actividades, desde aviador, a publicitário, cartazista, ilustrador, assim como à caricatura, tendo obra publicada no "ABC", "Diário de Notícias Ilustrado", Mulheres do Norte, "A Palavra", "Aquila", "Civilização", "Latina", "Ilustração Moderna", "Comércio do Porto", "Renascença", "Eva"… Como referem os críticos de então modernizou em elegâncias a visão intimista paterna.
D. Fuas é naturalmente um pseudónimo, de uma vida dupla. Pseudónimo de Luís de Carvalho Cunha,  Natural de Armamar, onde nasceu a 17/3/1889, virá a morrer no Porto a 12 de Agosto de 1963. Apesar de no inicio ter sido dado como médico, confundindo a sua identidade com outro artista-médico (Otilio de Figueiredo) que por vezes assinou também com o pseudónimo de D. Fuas, este artista era i proprietário da empresa Tipografia Imprensa Portuguesa no Porto.
O seu traço está ligado a uma segunda geração modernista, onde a síntese roça a abstracção na caricatura, enquanto que o desenho de humor segue a escola do modernismo espanhol, menos anguloso, mais rococo de síntese. A sua obra, apesar de também ser publicada nos jornais do sul, dominará durante décadas as páginas dos jornais do norte. Assim encontramos trabalhos seus em "Cocóroco", "Domingo Ilustrado", "Pim-pam-pum", "Sempre Fixe", "Stadium", "Diário de Lisboa", "Primeiro de Janeiro", "Maria Rita", "Diário do Alentejo" (1938), "Maria da Graça" (Luanda 1935)…
Apesar dos diversos pontos do país com actividades próprias e cosmopolitas, Lisboa continua a ser o centro do mundo: Tardes doiradas de Lisboa, - escreve Reinaldo Ferreira, in "Europa" de Abril 1925 -  tardes de Chiado, tardes que morrem com suavidades agonizantes piedosamente infectadas de morfina… Sonho de Paris, visão da Rue de la Paix, um bilhete postal; estampilha de civilização e de elegancia n'um curto envelope, amarfanhado e sujo pelos carimbos dos séculos…
Tardes de chá… Autos que passam, luzindo metaes espelhantes, quasi sem buzinar, sem fazer ruído, como n'uma projecção cinematográfica… Casacos "mujiks", quentes de peles; exposição de rostos maquilhados, desenhos de Penagos, fantasias de Bartolozzi, diabruras de Stuart, caprichos berrantes de Barradas… Olhos verdes e olhos negros, que são de louça; pestanas longas e frizadas por pinças miniaturaes; sobrancelhas finas e brilhantes como virgulas pintadas com tinta da china; cabelos à Garçonne, masculinisando os rostos, transformando as mulheres em gaiatos ingleses… Depois, o carmim a pôr em braza os lábios carnosos, as bocas rasgadas; os batons que desfolham rosas sobre as faces…
Neste ano abre o Salão de Chá "Versailles", multiplicam-se os Chás nas casas das Marquesas, Condessas, os salões literários. As revistas de moda e sociais multiplicam-se, é tempo de informação, de criar um reflexo da sociedade cosmopolita e mundana. Cria-se um diálogo com um público sobre o real, e o desejo de mundaneidade. "ABC", "Ilustração", "Magazine Bertrand", "Civilização"… são revista que como a "Contemporânea" se apresenta como revista feita expressamente para gente civilizada - revista feita expressamente para civilizar gente. No mundo da moda veremos aparecer "Eva", "Voga"…, no campo do cinema "Kino, "Cinéfilo", "Imagem"…, no campo do desporto "Off-Side"…Desenvolve-se a cultura da informação e da imagem, onde a fotografia toma um lugar cada vez mais relevante.
Sobre este Modernismo Mundano o ABC (de 4/10/1928 com texto assinado A.C.) teoriza: Há certos nomes de família que se pronunciam batendo fortemente as sílabas e que ecoam como toques de fanfarra, são nomes gloriosos, cheios de significação, que foram brados de guerra em heróicas batalhas; modernismo é hoje uma palavra que se pronuncia tal como esses velhos nomes heróicos e que para muitos soa como o clangor das trombetas guerreiras.
Modernismo, apesar de ser uma palavra tão velha como o mundo, porque em todos os momentos os homens se sentiram modernos, tem hoje, porém, tão vasto significado que difícil se torna num simples artigo de magazine traduzir o seu valor.
É indubitável que ela traduz uma verdade importante, já que continuamente o ouvimos pronunciar com orgulhos luminosos ou com desprezos enjoados.
Modernismo, é pois, alguma coisa, alguma coisa de tão importante que, por si só, extrema dois campos.
Modernismo é a grande conquista do nosso século, modernismo é o espírito novo, nascido na dor cruciante da grande guerra.
Modernismo é a compreensão da vida, da vida física e da vida mental, que a estulticia, o preconceito ignóbil e as megalomanias imperialistas, aniquilaram no trágico massacre da grande guerra.
Modernismo é o grande impulso naturista do nosso tempo, é a Renascença da vida ao ar livre que o cristianismo triunfante tinha sepultado nas masmorras do preconceito.
Modernismo é uma invencível reviviscência pagã que lançou as mulheres nos stádios, no sport, na vida ao ar livre, que as roubou às penumbras doentias da hipocrisia fradesca, para as entregar à carícia do sol.
Nunca uma civilização foi tão difícil de definir como a nossa, mas, nunca também, uma civilização se mostrou tão diferente das suas antecessoras.
É, primeiramente, o terreno material em que a transformação foi tão rápida, tão fulminante, que ainda nós balbuciamos os princípios de um invento extraordinário e já um outro se anuncia, mais maravilhoso ainda.
A máquina. a grande conquista, a cabal demonstração da divindade do homem, multiplicou-se, lançou os seus milhões de tentáculos para todos os terrenos da actividade dos homens, e moveu aeroplanos, moveu submarinos, lançou em loucas velocidades automóveis e expressos, furou montanhas, rompeu os continentes. modificou a forma dos mares.
E como primeira consequência, a máquina trouxe a morte do tempo e o culto da velocidade.
O tempo quase não existe ante a rapidez fulminante da mecânica moderna, Tudo se faz depressa, numa vibração alucinante, numa actividade febril, que imprimem ao homem de hoje uma concepção nova do valor das coisas.
Mas, se no campo material, o modernismo apresenta uma face mui diversa do que mostrava o século passado; no campo espiritual a transformação não foi menos radical.
O pensamento de hoje é qualquer coisa de tão diferente do que era há vinte anos, que muitos indivíduos, menos aptos à Grande Transformação, ficaram para trás, deixaram-se distanciar pela Ideia Nova, e por mais que queiram «modernismo» é para eles uma «triaga» de valor estranho e que lhe revolta o paladar.
A «humanidade nova» chamou alguém à gente do nosso século, e nenhuma designação é tão justa como essa.
Humanidade nova, com uma sensibilidade que lhe é própria, como uma audácia criadora que varreu quase que inteiramente as peias da tradição.
Um novo credo surgiu, orgulhoso, demoníaco, segundo a doutrina católica, mas coerente e lógico com as conquistas da Idade Moderna.
Os homens de hoje crêem no homem, no seu génio, na sua força criadora, crêem na vida.
Viver é a grande finalidade de hoje, viver vencendo o tempo e gosando as grandes verdades naturais que habitam o coração do homem.
Viver o sol, viver o amor, viver a alegria !
Em tudo se espelha a nova concepção das coisas: na arte, em que junto as linhas puras do Belo se aninha a sinuosidade do Feio, na Ciência em que se investiga, lado a lado, a grande verdade material e a obscura hipótese metafísica.
Modernismo é, sobre tudo, a era da Tolerância, vasta, completa, em que todos cabem, desde que queiram fazer a sua vida, sem proselitismos irritantes, sem hegemonias hipócritas.
Modernismo é, se nos fosse lícito classifica-lo dentro das concepções da nova matemática einsteiniana, dentro desse novo hino à luz, um poderoso feixe de rectas marchando da Terra para o Sol.
Neste ano a SNBA em Lisboa apresentou uma exposição de João Fernandes Thomás, não de pintura ou desenho, mas de fotografias, o que não era habitual apresentar a fotografia como uma arte de galeria. É no fundo uma Galeria de Individualidades de relevo social. Para o nosso caso, o interesse desta exposição de retratos, é que incorpora uma série de retratos de caricaturistas, cujo catálogo faz mini-apresentações dos retratados, com cunho irónico, escritos por dois companheiros das aventuras dos caricaturistas, Afonso de Bragança e Cardoso Martha:
Almada Negreiros (José de). Pintor e Poeta. Autor do k4 Quadrado Azul, da novela A engomadeira, do Manifesto «Anti-Dantas» e doutras obras que marcam pelo seu modernismo exaltado. É um dos mais brilhantes elementos de nova geração - o seu «éclaireur». Figura estranha de cabeça egípcia.
Barradas (Jorge). Caricaturista, mas caricaturista á maneira alemã. A sua arte é graciosa e pequenina. Ele é mesmo um «boche» em miniatura.
Boaventura (Armando). Caricaturista e jornalista. Ilustrador de jornais e revistas.
Cardoso Martha (Manuel). Poeta. Publicista. Interessante espírito de investigador. Autor de dois volumes sobre folk-lore, dum livro de Versos e co-organizador dum valioso In-Memoriam de Eça de Queiroz. Premiado nos Jogo Florais Internacionais de Salamanca. Físico de frade bernardo com alma de benedictino.
Colaço (Jorge). Figura velasquiana, sotaque estrangeiro. Decorativo e decorador. Os seus azulejos são muito apreciados em Portugal. Ele mesmo é um azulejo - sem quadrícula…
Leal da Câmara (Tomás). Pintor. Célebre em Paris e portanto em todo o mundo, no tempo de l'Assiette au beurre. A sua galeria de reis é notável. Hoje, decorador de gosto, Cabeça de papagaio sarcástico. Não podendo trazer Paris para Portugal, pensa em levar Portugal para França, numa aldeia.
Marques (Bernardo). Desenhador. Algarvio. Ilustrador de livros e magazines, cheio de cor. Sugestões cubistas. Cultiva as mulheres feias… em arte.
Soares (António). Pintor. Pintor de mulheres em especial. A sua arte esquemática é um tratado de geometria da mulher. Preços altos.
Sousa (Alberto de). Aguarelista. Sócio dos mais assíduos da associação dos Arqueólogos. Apaixonou-se pelo passado, e fê-lo presente aos seus contemporâneos. É um pintor dos velhos palácios, dos claustros silenciosos, dos recantos pitorescos, campanários visitados das corujas e janelas rotuladas donde namoravam franças e casquilhos.
Stuart Carvalhais (José). Pintor. Um virtuose do lápis. Sensibilidade de artista moderno. Boémio de espírito e de corpo. Em Arte bebe par son verre, que não é pequeno, como o de Musset.
Valença (Francisco). Caricaturista da velha guarda. Expositor do 1º e 2º Salon de Humoristas. Ninguém como ele sabe apanhar o lado ridículo de pessoas e dos costumes. Os seus grotescos não precisam de legenda; fazem rir por si, como o Vale em scena, ainda antes de abrir a boca.
Neste ano o acontecimento mais importante para a sociedade portuguesa será o feito de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, que atravessará o Atlântico sul de Avião, numa viagem pioneira.


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