Friday, March 20, 2020
Historia da arte da Caricatura de imprensa em Portugal 1920 por Osvaldo Macedo de Sousa
Durante a primeira década de
republicanismo houve duas ditaduras, um 'regicídio', quatro revoluções grandes,
muitas revoluções de bastidores, muitos ministérios e ministros. De Janeiro de 1920 a Março de 21 haverá
sete ministérios…
Este ano de 20 foi o ano de
uma série de exposições, hábito que só se desenvolveu com a República. Desta
forma encontramos em Fevereiro uma exposição de Menezes Ferreira no Salão
Bobone, com desenhos de humor de guerra, tema em que se especializou este
humorista militar de carreira.
Em Março será a vez de Leal
da Câmara, na Rua do Século, que abandonou o Porto, para se instalar
definitivamente em Lisboa, tendo como profissão, não a de humorista de
imprensa, mas a de Professor da Escola Industrial. Faz um contrato com os
Móveis Olaio, passando a exercer a actividade de designer de interiores para
aquela firma. O desenho, e a pintura fica como uma segunda via. De todas as
formas vamos encontrando trabalhos seus na "Ilustração Portuguesa",
"ABC a Rir", "O Século"…
Em Maio, expõem Jorge
Barradas e o recém-chegado do "exílio", Almada Negreiro. Sobre o
primeiro, escreve a "Ilustração
Portuguesa" (Maio): Jorge Barradas
é um dos mais intensos e originais humoristas portugueses e que pela sua Arte
tão femenil, tão aristocrática tão subtil ele tem um logar aparte e
inconfundível na pintura humorística da nossa terra. Como Prejelean ele é o
artista da mulher e sabe como ninguém fixar as suas mil e uma atitudes, todas
as frivolidades do seu espírito, todas as graças, todas as perversões. Se
Rafael Bordalo é o artista combativo da Sociedade Portuguesa, ironista e
sarcasta sem temor, Barradas é o comentador dos ridículos e o anotador
flagrante das visíveis passagens da fauna que a compõe.
Armando Ferreira, crítico do
jornal "A Capital" (de 20/5) escreverá: Barradas tem uma técnica muito original, muito interessante que, só por
si, bastaria para o tornar um consagrado em qualquer paíz de grande intensidade
e desenvolvimento artístico. O seu traço não define linhas nem contornos, não
dá a rigidez angulosa e fria das saliências bruscas; é um arame fino,
contorcido, elegante, que origina as sombras, os efeitos, as expressões as mais
cómicas, as mais deformadas, e sendo leve se cuaduna magnificamente à verve
fina e mordaz das legendas que Barradas, espírito irónico da nossa pequena
«Toute Lisbonne» coloca sob os seus desenhos.
Em relação a Almada
Negreiros, o mesmo crítico A.F. escreve (de 27/5 in "A Capital"): Ali no Teatro de S. Carlos estão expostas
umas dúzias de trabalhos de Almada Negreiros, filiado no género avançado das
artes… e das letras.
O expositor é uma criança de 10 anos cujos primeiros desenhos e
borrõesitos denotam alguma cultura e dão esperanças. Certamente que ao entrar
na exposição ninguém irá procurara arte, desenho rigoroso sob qualquer forma a
mais moderna, mas simplesmente os entretenimentos, as blagues, o divertimento
de um colegial que anda ainda nos primeiros rudimentos da pintura.
Procurando bem, entre os bonecos, as sujidades de caixa de tinta barata
que o jovem Almada Negreiros expõe pour
epater - 15$00 cada folhinha de papel - encontrará o visitante de olhar
mais lúcido uma meza - a do meio - onde uns trabalhos de 1915, 1914 denotam as
qualidades, a técnica, o sentimento, a forma do jovem Almada Negreiros que
nessa data, com mais alguns anos por cima dos que revela hoje, ainda tinha
produções compreensíveis e até admiráveis. Deixou-se porém dessa banalidade e
elevando, aprimorando o seu género é hoje aquela creança de cabelos negros que
expõe… «A mulher com raiva a todas as creanças do prédio até ao 5º andar…e mais
que houvesse», e outras «fumisteries» do autor do K4 O quadrado Azul.
Estiramentos, contorções, estilisações extremas que vão até ao cubismo
de Picasso, ou aos rabiscos cheios de intuição do filho do meu porteiro, é esta
a 2ª Descoberta de Portugal na Europa no séc. XX: a 1º foi por Amadeu de Souza
Carneiro, na Liga Naval, com versos de Almada Negreiros.
A entrada é grátis e não vale contrariar.
É curiosa esta disparidade de
crítica perante a obra de dois modernistas, como que houvesse um limite, uma
fronteira para a irreverência estética. Em relação à referência errada do nome
de Amadeo não sabemos se foi gralha tipográfica, ou ignorância do crítico.
Nestes anos de fim de década
surge um novo artista em Lisboa, que reivindica ser discípulo de Cristiano
Cruz, e que vem para se integrar neste núcleo residual artistas irreverentes,
que teimosamente procuram colocar o nosso país no trilho da contemporaneidade
plástica. Esse jovem artista é Bernardo Marques natural de Silves (21/11/1898).
Vem para a capital em 1918 para a Faculdade de Letras, mas o ambiente do Chiado
em breve fariam ressaltar o seu gosto e aptidões plásticas. Começa a publicar
na imprensa em 1920, na "Ilustração Portuguesa", no "ABC"….
e expõe no III Salão dos Humoristas de Lisboa.
Parecendo um paradoxo, na
realidade passados sete anos de silêncio, o Grupo dos Humoristas Portugueses,
ou o que restava dele, e sua virtual sociedade, realiza um retardatário III
Salão. Aqui se pode ver quão dispersas andavam as vontades dos artistas. Tanto
o Porto em 1915, quando realiza o Salão dos Humoristas e Modernistas, como os
outros Salões de Modernistas do Porto não se inserem numa continuidade do
projecto de Lisboa. Nem este de 1920 em Lisboa toma em conta os realizados no
Porto, e apresenta-se como o terceiro. Contudo as presenças em todos eles foram
quase sempre dos mesmos.
Os Salões de Lisboa, tiveram
grande impacto na história das nossas artes, sendo o segundo de melhor
qualidade modernista, mas com menos impacto no público. Os do Porto de imediato
procuram demarcar-se do Humorismo, para se imporem como modernistas,
independente dos diferentes género plásticos apresentados.
Este de 20 intenta recuperar
a linha original, contudo já perdeu o ‘comboio’ da irreverência, assim como
perdeu toda a sua força reivindicativa de grupo profissional, para ser apenas
uma mostra de trabalhos de artistas humoristas, ou próximos deles.
Sobre a sua preparação, temos
uma entrevista de Armando Ferreira a pessoa não identifica, em "A
Capital" de 27/5, e que nos esclarece: Anuncia-se para 5 de Junho a abertura da exposição dos Humoristas nas
salas do belo palácio Foz (aqui em segredo no ex-Maxim's). A nota é excelente
no nosso meio artístico: os humoristas! Mas esse Portugal onde os habitantes
tem aquela expressão tão banalizada - tou-jours gais - não tivesse o seu
punhado de artistas-humoristas, no género caricatura, no género blague, no
género comentário que outro paíz melhor os havia de apresentar ?
Por isso a exposição constitue um novo facto no nosso mazombo meio. Um
dos expositores, dos que pertence à comissão, apanhado na faina de congregar,
mexer, movimentar toda essa bohémia que vai expor, cede ao suplicio duma
entrevista… volante:
- Quando abre o certamen ?
- De 5 a
10 tem de abrir…
- Quem expõe dos nossos ?
- Mandou-se convite a todos os artistas novos, como Alberto Souza,
Milly Possoz, Rey Colaço, M. Jourdain que, embora não humoristas são
modernistas e…
- Mas seguros quem ?
- Até agora temos a certeza de Leal da Câmara, Emmérico Nunes, Jorge
Barradas, Almada Negreiros, António Soares, Manuel Gustavo Bordallo Pinheiro,
Ernesto Canto, Menezes Ferreira, Stuart Carvalhais, Valença, Cotinelli Telmo,
Rodrigo Castañe, Rocha Vieira, Alfredo Cândido, Sanches de Castro, Amarelhe…
Alguns já mandaram os trabalhos, tal o entusiasmo… outros continuam na
indiferença e preguiça que são costumes dos antigos bohémios e artistas,
esquecendo que a vida de hoje é muito diferente. A Hespanha há poucos anos não
tinha caricaturistas. Basta dizer que o presidente dos humoristas hespanhois é…
Leal da Câmara.
- A propósito de hespanhois. Consta que figuram na exposição…
- José Francez, esse bom amigo que Portugal tem em Hespanha, acha-se
empenhadíssimo nessa representação. Ao convite que ha pouco tempo os nossos
humoristas receberam para irem expor a Madrid com os artistas hespanhois,
correspondeu-se agora convidando-os a cá virem.
E assim teremos cá, Ribas, colaborador de quasi todas as revistas
hispano-americanas, Bartolozi, artista que os leitores da Esfera bem conhecem, Ki Hito, do Blanco y Negro, Robledano, do Nuevo
Mundo, Tovar do Liberal; Sileno,
do Blanco y Negro, Mari, da Esfera, etc.
/…/ - Quem está à frente da comissão ?
- O artista do Simplicissimus, Emmérico Nunes, cujos hábitos de
trabalho o impunham a este espinhoso cargo. Foi sob o modelo da última
exposição dos humoristas de Zurich que se elaborou o programa e condições da
nossa nova exposição de humoristas.
Segundo palavras da
auto-biografia de Emmérico houve uma tentativa de se realizar uma exposição
luso-espanhola em Madrid, mas o único português que respondeu foi o próprio
Emmérico, que mereceu então uma série de páginas elogiosas na imprensa
espanhola, que reproduziu os trabalhos enviados. Em contra-resposta àquele
convite, Emmérico pôs-se em campo para responder àquele convite, com realização
semelhante, nascendo assim o III Salão dos Humoristas.
Afinal a exposição não se
realizou no Palácio Foz, em local que o jornalista confidenciava
pejorativamente ter sido o Maxim's, nem se inaugurou entre 5 e 10, mas a 1 de
Julho nos Foyers do Teatro Nacional de São Carlos.
Apesar da maior nobreza do
local, não teve grande repercussão mediática. Inclusive este Teatro, com a
República foi castigado pelo sua vida nobiliárquica anterior. Após algum
abandono, tentativas de ocupação pelo teatro declamado, só em 1919 conseguira
reabrir as portas ao Teatro Lírico, numa luta pela sua reintegração no meio
social de elite. Esta exposição surge ainda no âmbito de múltiplas ocupações
não operáticas deste espaço.
Se os primeiros Salões, tinham
como objectivo a defesa da arte nacional, e se denominaram dos Humoristas
Portugueses, este terceiro Salão abre logo com uma extensa participação de
artistas espanhóis, mais concretamente 14 artistas, todos residentes em Madrid.
É , como já vimos uma reacção a um convite espanhol, assim como a uma nova
visão internacional das artes, num universalismo que tanto o modernismo, como o
futurismo reivindicavam. Havia também a presença de estrangeiros residentes em
Portugal, como Adolfo Castañe, J. Blatte, Albert Jourdan, Jimmy Savin. Os
portugueses participantes foram: Armando de Basto, Stuart Carvalhais, Emmerico
Nunes, Domingos Rebelo, António Soares, Ruy Vaz, Ernesto do Canto, Norberto
Correia, Almada Negreiros, João Maria (Arnaldo Ressano), Balha e Mello, Jorge
Barradas, Leal da Câmara, Alfredo Cândido, Francisco de Castro, Hypolito
Collomb, Christiano Cruz, Apeles Espanca, Martinho da Fonseca, Bernardo
Marques, João de Menezes Ferreira, Ramos Ribeiro, Rocha Vieira, Sanches de
Castro, Alberto Telles-Machado, Xico, Viriato Silva, José Pacheco, um conjunto
de 237 peças nas vertentes de pintura, desenho, desenho humorístico, escultura,
arquitectura e artes industriais.
Nós cremos que foi um
fracasso de público, e de repercussão na imprensa, mas Emmérico Nunes nas sua
auto-biografia diz que à exposição, além da representação
humorística, concorreram a ela pintores e escultores, arquitectos e ceramistas
e obteve um grande êxito, tanto artístico como comercial.
Dos artistas anunciados na
entrevista, denota-se a ausência de Manuel Gustavo Bordallo Pinheiro, cada vez
mais afastado deste meio, muito doente, e que entretanto faleceria. Ausentes
também Cottinelli Telmo, Francisco Valença e Amarelhe. Havia uma série de
repetentes. Nesta exposição vamos reencontrar 17 dos participantes dos
primeiros dois Salões de Lisboa, 12 dos quais com presença em todos eles, e 4
que estiveram em todas as exposições com a designação de Humoristas (12, 13,
15, 20). Novos aparecem nove nomes onde se destacam Arnaldo Ressano, e fundamentalmente
Bernardo Marques.
Há frente da Comissão
organizadora estava Emmérico Nunes, o veterano que já tinha estado na Exposição
dos Livres (1911), e nos Humoristas de Lisboa e Porto. Outra figura importante,
mas que se manteve sempre de bastidores, é Manuel Cardoso Martha, como
Secretário Geral dos salões. Com obras presentes, mas ausentes do país
encontramos Christiano Cruz (em Moçambique), Almada (em Madrid) e Hypolito
Collomb (no Brasil).
A 29 de Agosto, "O
Século" inicia uma nova tira cómica da autoria de Rocha Vieira, chamada
"As Fitas de Juca & Zeca", como substituto das Aventuras do Quim
e manecas" de Stuart, que tinham desaparecido em 1918. Segundo António
Dias de Deus, esta tira é uma das pioneiras "Daily Strips" europeias.
Mais uma vez o nome de Acácio de Paiva, ou Belmiro surgem como autor de alguns,
ou todos os argumentos
Rocha Vieira, de nome
completo Alfredo Carlos da R.V. é açoriano, natural de Angra do Heroísmo
(1883), viria para o continente ainda jovem. Estudou na Sociedade Nacional de Belas-Artes
de Lisboa com os Mestres Casanova e António Ramalho, assim como com o Mestre
Roque Gameiro. Os seus primeiros trabalhos gráficos surgem em 1907 em a
"Paródia - Comédia Portuguesa", aparecendo depois em "O
Sindicalista" (1913), "O Pai Lino" (1914), contudo a sua
carreira artística desenvolve-se fundamentalmente em "O Século", para
cuja empresa trabalhará 41 anos. Trabalhará em todas as suas publicações, sejam
noticiosas, humorísticas, infantis, de moda, almanaques…Encontram-se trabalhos
seus também no "Sports Ilustrado", "A Batalha", "A
Renovação", "Europa", "Espectro", "ABC a
Rir", "Sempre Fixe", "Diário de Notícias"…
No campo do humor gráfico, a
sua presença é sentida pela quantidade de trabalhos, não pela qualidade, já que
nunca passará de um académico, com um humor popular, sem grandes rasgos
satíricos. Contudo os historiadores da Banda Desenhada destacam-no,
principalmente como introdutor da tira
diária de jornal (1920), da prancha dominical de jornal ("As proezas do
Necas & Tonecas" 1922), e da H.Q. realista de continuação (1921).
Virias a morrer em 1947
(4/11) em Lisboa
Como já referimos, figura
impar na história da BD, e da ilustração infantil é Stuart Carvalhais, que ao
longo destes anos 20 terá diversos suportes editoriais onde publicar, como é o
caso das revistas "A.B.Czinho", "Pim-Pam-Pum",
"Tic-Tac", "O Sr. Doutor"… Nestas mesmas revistas vamos
encontrar artistas como Cottinelli Telmo, Raquel Roque Gameiro, Bernardo
Marques…
Neste ano morre Manuel
Gustavo Bordallo Pinheiro, desaparecendo assim uma das últimas grandes figuras
da segunda fase do humorismo português. Morreu doente, e esquecido, já que
serão poucas as referências a este desaparecimento na imprensa, e nenhuma as
homenagens.
Em 1927 Leal da Câmara ficará
encarregue do seu elogio, aquando da inauguração da Aula de Desenho Ornamental
com o seu nome na escola Industrial Fonseca Benevides. Dirá então : Falar de um artista é sempre grato ao nosso
espírito mas, quando esse artista foi um querido amigo, um companheiro de lutas
pela Arte, uma personalidade que teve semelhanças connosco sob o ponto de vista
psíquico e profissiona1 e foi um professor cuja cadeira nós temos a grande
honra de ocupar, já não é somente prazer o que sentimos pois falar desse
artista torna-se um dever de gratidão e de respeito pela sua memória gentil.
/…/ Lembro-me do Manuel Gustavo da primeira época, cheio de vida e de
mocidade, do tempo em que desenhava tudo e todos com aquele traço enérgico,
rectilíneo, que se desenvolvia em linhas quebradas vigorosas e que, no seu
conjunto representavam as charges mais hilariantes e inesperadas.
Esses desenhos, já nesse tempo contrastavam com a grafia nervosa e
ligeira do pai Bordalo, pela audácia e pelo vigor bem próprios da sua
exuberante juventude.
/…/ Seguindo e acompanhando seu pai, com a modéstia admirativa que foi
uma das características da psicologia de Manuel Gustavo e que ele próprio
definiu inconscientemente por uma forma jocosa, em uma legenda célebre posta ao
baixo de uma sua auto-caricatura - a pior
obra de meu pai!... - o nome de Manuel Gustavo não tomou, talvez, todo
aquele valor que o seu talento merecia mas, no decorrer dos anos e já metido
nesta dureza da luta pela vida e em frente das mil dificuldades que se
apresentam a quem deseja vencer e trilhar caminhos inéditos, Manuel Gustavo
começou a tomar conhecimento de si próprio, a libertar-se da pesada tutela
artística de seu ilustre pai, a avaliar a sua própria força, a estudar o seu métier de professor, o seu oficio de
desenhador e mais tarde o de ceramista em que foi verdadeiramente notável.
A sua curiosidade intelectual levou-o a procurar outras formas
diferentes das que seu pai encontrara para o barro das Caldas sob a égide de
Bernard Palissy.
Observador inteligente, Manuel Gustavo foi procurar, às formas clássicas,
aquela beleza peregrina que foi bela, ainda o é e, estou certo, será bela
eternamente.
/…/ Quando se fizer a história das artes decorativas em Portugal que é
necessário não confundir com o estudo, estreitamente etnográfico das
manifestações populares mas sim, com o culto e sensível desenvolvimento
estético dessas bases tradicionais aplicadas aos utensílios complexos da nossa
vida e do nosso conforto, estou certo que Manuel Gustavo será considerado como
uma das pilastras desse esforço renovador na Arte Portuguesa que pretende tão
somente conquistar um campo mais vasto e mais útil ao génio inventivo dos
nossos artistas criadores.
Será talvez bastante o dizer que as obras de Manuel Gustavo, a linha
directriz da sua existência, essa trajectória que nós todos descrevemos na
ansiedade de perfeição e de perpetuidade, foram um exemplo de elegância e de
beleza discretas e asseguraram a Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro não só a
admiração dos seus contemporâneos, dos que o conheceram e estimaram, mas
certamente, a adesão da própria posteridade que verá neste desenhador e
ceramista um dos artistas típicos deste período de perturbação estética em que
a arte procura novos horizontes, e novas expressões e representam esta sede
ardente de beleza que está fervente na alma das gerações modernas.
A 10 de Setembro de 1931, o
"Sempre Fixe" homenagea-lo-á, com um texto de Francisco da
Silva-Passos:
S. MANUEL GUSTAVO
Santo sim ! Três vezes santo, pelo seu coração amantíssimo, pelo seu
carácter impoluto, pela sua generosidade risonha para os humildes.
Meu querido, meu saudosíssimo Manuel Gustavo, companheiro constante e
fiel, carinhoso, inimitável e inesquecível !
Revejo-te agora na minha retina saudosa, através das minhas lágrimas
(que tu sabes sinceras) como da última vez. Depois da tua doença; magrinho,
tremente, sorrindo com esforço - Tal qual como eu estou hoje !
/…/ Já sabem que Manoel Gustavo Bordallo Pinheiro nunca, a não ser
doente com gravidade, um só dia deixou de dar aula na Escola Industrial de
Rodrigues Sampaio, em que foi sempre ilustre, solícito e sábio professor,
honrando, sem contesto, a sua arte, sob mais esse aspecto.
Mas de que falaríamos nós naqueles intermináveis colóquios nocturnos ?
Das nossas conquistas
amorosas ? Dos nossos projectos de glória ?…
Eu talvez, de tempos a tempos, lhe anunciasse um projecto glorioso de
poema heróico, e ao seu coração sempre jovem, sempre alegre, confiasse algum
sonho de amor roseo evanescente… Ele nunca me falou senão … do Pai Raphael. « Meu pai, duma vez…» «Quando meu Pai publicou
aquela página…» «Tu sabes que meu Pai, lá fora…»
- Ó Manoel Gustavo, mas morto teu Pai, deves mostrar quanto vales…
- Eu só valho a obra de meu Pai.
E foi toda a sua vida ! O culto do Pai, o grande, o genial Raphael
Bordallo, o amor da Mãe e da Irmã, a devoção de conservar a Fábrica das Caldas.
Manoel Gustavo viveu a
esconder-se, contente e orgulhoso, detráz da figura brutal de Raphael.
Mas era um grande artista; um formidável desenhista; e foi um ceramista ilustre
e um renovador.