Thursday, January 23, 2020

Humor e Religião por Onofre Varela



"Herman José, em 1994, teve um programa no canal 1 da RTP, denominado Herman Zap!, de grande audiência e agrado nacional. Um dia, nas suas rábulas, criou uma Última Ceia de Jesus, humorística. Caiu o Carmo e a Trindade!… A Igreja Católica não achou piada nenhuma àquele excelente trabalho de comédia, e protestou. O bispo Maurílio Gouveia, então responsável por um gabinete que julgo denominar-se “Episcopado para a Comunicação”, apressou-se a dizer que “O programa ridicularizou o que há de mais sagrado na fé dos cristãos: a eucaristia”. A série de programas foi interrompida e realizaram-se mesas redondas debatendo a questão religiosa e a liberdade de expressão.
Marcelo Rebelo de Sousa, então presidente do PPD, declarou: “Vejo com preocupação que, sendo um canal de serviço público, nele se encontrem mensagens que podem ser consideradas ofensivas de valores partilhados pela maioria dos portugueses e também ofensivas de instituições particularmente relevantes como é a Igreja Católica”. Herman José mostrou-se surpreendido pela reacção da Igreja, e declarou: “Deus deve estar a rir-se às gargalhadas da mesquinhez de quem criticou o Herman Zap!”.
Organizou-se uma mesa redonda na RTP onde se discutiu aquele programa televisivo de diversão transformado em tragédia nacional para a Igreja, e o frei Bento Domingues pareceu-me ser, de entre os vários intervenientes, aquele que teve a opinião mais lúcida. Declarou ter visto o programa e não ter encontrado nele nada que beliscasse a sua fé. Confessou que até lhe achou graça: “Aquilo tinha a ver com o meu riso, não com a minha fé”, disse.
Há cerca de 15 dias, uma notícia deu conta de um ataque, no Brasil, com cocktails Molotov, à sede da produtora de conteúdos televisivos Porta dos Fundos, na madrugada do dia 24 de Dezembro, como protesto pela transmissão televisiva de um sketch cómico com o título "A primeira tentação de Cristo", na qual Jesus é representado como um jovem que terá tido uma experiência homossexual, e também insinua que o casal bíblico Maria e José viveram um triângulo amoroso com Deus.
Eu vi o programa e não lhe achei a graça que, provavelmente, os seus autores pretendiam. Teve dois ou três momentos de humor, e o restante, para o meu gosto e de acordo com o excelente trabalho que já vi do mesmo grupo, era francamente mau. A qualidade daquilo era muito rasteira… mas, daí, até se lançarem bombas contra a empresa produtora do programa, vai uma distância abissal!… Pode-se gostar ou não gostar e criticar o programa. Se nos consideramos ofendidos apresentamos o nosso protesto às entidades competentes para julgar o caso, e esperamos que a Democracia e a Justiça façam o seu trabalho… mas um ataque à bomba é crime! 
No momento actual da política brasileira, com as acções da Direita mais extremista apoiada por Jaír Bolsonaro, a liberdade de expressão e de criação artística está comprometida. O próprio filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, deputado por São Paulo, foi uma das figuras públicas a condenar o sketch. Os actores Gregório Duvivier e Fábio Porchat, responsáveis pela “Porta dos Fundos”, declararam: “Não nos vamos calar! Nunca!”. Eu apoio-os na sua luta, embora aquele seu trabalho não me agradasse, mas defendo a sagrada liberdade de expressão.
Um dia depois do atentado, um grupo ultra-nacionalista intitulado Comando de Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integrista Brasileira, reivindicou a responsabilidade do atentado. O espírito que sobressai do nome deste grupo leva-me a entendê-lo como uma espécie de Ku-Klux-Klan e de agrupamento Nazi. Só grupos de tal índole atacam a liberdade de expressão, alegadamente em favor de um ultra-nacionalismo balofo, desusado e criminoso."
Os religiosos que se sentem ofendidos com uma comédia quando ela brinca com elementos da sua crença, devem protestar nos locais próprios que os regimes democráticos têm para esse fim.
No caso do atentado brasileiro duvido do sentimento cristão do grupo de criminosos-nacionalistas, cuja reacção foi atacar à bomba!… Este acto poderá estar relacionado com o actual regime político que permite a violência e tem gente da IURD sentada no Parlamento, sendo que o próprio presidente é afecto a essa seita dita evangélica, e por muitos apontada como criminosa. 
Os extremistas muçulmanos também reagiram com metralhadoras contra o jornal satírico Charlie Hebdo, em 2015, matando 12 jornalistas-cartunistas, só porque não gostaram de uma crítica a Maomé! Os extremistas religiosos e patrióticos não pensam para além do tabu sacramental de Deus e da Pátria. Não têm sentido de humor, nem nenhum outro sentimento que não seja o da vingança violenta. A interpretação que fazem dos textos religiosos é programada pelos gurus das seitas e dos credos, e não pela sua capacidade de entendimento.
No caso da comédia brasileira, aludindo uma hipotética homossexualidade de Jesus, ressaltam alguns condicionamentos mentais dos crentes que os levam à irritação, à fúria e ao crime. Desde logo, temos a própria homossexualidade que é condenada por si só e que os crentes rotulam de “pecado”. E depois… não lêem a Bíblia! Dizem ser o seu livro sagrado, mas não têm a mínima ideia do seu conteúdo!
No Novo Testamento (João: 13; 21-30) é narrada uma cena incluída no capítulo onde se encontra a célebre frase de Jesus: “Na verdade vos digo que um de vós me há-de trair”. Perante esta denúncia, os seus discípulos olharam-se, perplexos com o que o Mestre lhes dizia. A parte curiosa desta narrativa está nesta frase: “um dos seus discípulos, aquele a quem Jesus amava, estava reclinado no seio de Jesus”. Quer dizer que Jesus só amava um dos discípulos (ou amava-o mais, ou de modo diferente, do que a todos os outros?), que por acaso era aquele que se encontrava ao seu colo, na posição de reclinado… isto é, deitado… o que presumia alguma intimidade para além da amizade.
Simão Pedro fez sinal a esse jovem a quem Jesus amava, para que perguntasse ao Mestre quem era aquele que o haveria de trair. O jovem aproximou a sua boca do rosto de Jesus e perguntou: “Senhor, quem é?”. Segundo esta narrativa, aquele a quem Jesus amava e que se reclinava sobre o seu seio, era seu confidente e porta-voz. Através dele os outros discípulos dirigiam-lhe as questões e ouviam a resposta (pelo menos naqueles versículos).
A interpretação desta passagem bíblica pode ser variada… e uma das variações, tão válida como qualquer outra, pode ser entendida como havendo uma relação íntima entre aqueles dois homens. Não é à toa que os autores teatrais tratam os assuntos históricos ou míticos. Eles lêem, estudam e investigam, para poderem fundamentar as suas estórias que passam em palco, na televisão ou no cinema. Ao contrário, os fundamentalistas bíblicos só têm uma interpretação – a radical – e baseados nela arrogam-se o direito de lançar bombas contra aqueles que, dando cumprimento ao seu trabalho de criar rábulas teatrais (ou cartunes), atingem um nível de raciocínio que está vedado aos agressores. Por isso se radicalizam… e o governo brasileiro de Jaír Bolsonaro alimenta essa radicalização e parece apoiar os seus actos!… E se estes terroristas não forem apanhados e julgados… não parece que os apoia… apoia-os mesmo!
Termino transcrevendo uma frase do meu camarada cartunista Zé Oliveira: “Produzir humor é um acto de inteligência. Produzir terror é um acto de estupidez bárbara”.
(Publicado na «Gazeta de Paços de Ferreira», na edição de 9 e 23 de Janeiro de 2020)


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