Wednesday, October 09, 2019

KAP um humorista que vem da Catalunha por Osvaldo Macedo de Sousa



Jaume Capdevilla, humorista gráfico que assina como Kap, é natural de Berga - Barcelona (1974), distribuindo o seu trabalho por múltiplos periódicos (nomeadamente pelo «Trevim / Bronkit») onde se destacam «La Vanguardia» e «El Mundo Desportivo».
Para além da publicação na imprensa, a sua obra tem sido reunida regularmente em livros. Contudo, a sua actividade editorial não se resume a estas colectâneas, trabalhando também como ilustrador de livros, assim como  investigador na área do humor gráfico. Neste campo, publicou as biografias de Muntañola, Bagaria, Tisner, Andreu Dameson, como também investigações mais alargadas sobre «Trazos, un siglo de Ilustracion y buen humor en Mundo Desportivo», «Los Borbones a parir. Iconografia satírica de la monarquia española», entre várias.

Para conhecermos melhor o seu percurso e seu pensamento criativo lançámos-lhe uma série de questões:
OMS - Como surge o humor na tua vida?
Kap - O humor para mim é uma maneira de viver, uma maneira de ser, de pensar, de sentir. Impregna todos os aspectos da minha vida e apesar de eu não ser uma pessoa especialmente divertida, procuro que tudo à minha volta o seja, o que não quer dizer que não seja sério. Assim, é fácil incorporá-lo na minha profissão de desenhador de humor, ainda que o processo criativo seja muito intelectual, de pensar muito e de lhe dar muitas voltas, nada espontâneo...
 OMS - ¿ Quem foram os teus mestres e que tipo de humor mais gostas? ¿ A sátira, a ironia, o humor negro ou branco?
Kap - Como gosto tanto do humor, poderia dizer que 'como de tudo’. Inspiram-me os principais desenhadores da tradição catalã e espanhola (que conheço desde criança) mas, desde logo, também me fascinou a descoberta dos talentos internacionais de todas as épocas. Por outro lado, o humor está presente em muitos outros produtos culturais, desde o cinema à literatura, à musica e ao resto das artes. Fascina-me reconhecer e desfrutar dos mecanismos que cada criador usa na utilização do humor.
Como profissional do humor tenho claro que sátira, ironia, sarcasmo, paródia, ridicularização ou o humor branco (intemporal), negro (macabro) ou verde (erótico) têm as suas normas e usam-se para conseguir diferentes efeitos ou objectivos, de modo que me considero capaz de usá-los todos, procurando sempre o maior efeito, segundo as necessidades. Se queres nomes de artistas que admiro, posso fazer-te uma longa lista, mas nela estarão sem duvida Perich, Cesc, Chumy Chúmez e Gin (uma geração espanhola representativa, que é a minha referencia natural por geração e circunstância), mas também há os clássicos como Daumier, Gulbrandson, Caran D’Ache, Leal da Câmara, Bagaría, Sem, Beerbohm, Apa, J. Carlos, Searle, Addams, Gahan Wilson, Siné, Sempé, Bosc, Hirschfeld, Levine, Sokol, Ziraldo, Jaguar, Quino, Fontanarrosa…  

OMS - ¿ Alguma vez sentiste o peso da censura, a pressão de editores ou do público? ¿ Já te cortaram algum trabalho? ¿ Tens medo de ser mal entendido e compreendido na tua mensagem?
Kap - A questão da censura é muito complexa. Censura implica que há algo, alguma coisa que não se pode dizer, que não se pode explicar sob nenhum conceito. Mas o humor tem a capacidade de alterar o significado, ou seja, de falar de algo, ainda que não faça nenhuma referência directa a ele, pelo que é possível enganar a censura, principalmente se conta com a cumplicidade dos leitores.
Se alguma vez algum desenhador de humor afirmar que nunca lhe cortaram um desenho, podes estar certo que mente. Porque, sem ser «censura», cada meio de comunicação tem os seus interesses e pode decidir publicar ou não o que crê conveniente para eles. Nesse sentido, creio que o humorista deve manter-se coerente e tentar ser o mais honesto com os leitores, mas também aceitar os limites da empresa editora, sem comungar necessariamente com os pontos de vista da linha editorial. Esse espaço de liberdade que fica entre a linha editorial e o que o meio está disposto a publicar, é o que, com o seu talento, deve cada desenhador aproveitar. Acoplar-se à linha editorial, conformar-se a assentir e confirmar o que eles querem ouvir é renunciar ao espírito irreverente e contestatário desta profissão. Por tudo isso, caem alguns desenhos. E é bom que de vez em quando vão caindo, o que quer dizer que se mantém vivo esse espírito transgressor do criador.
Por outro lado, numa vinheta que exige sempre um esforço interpretativo por parte do leitor, existe, na verdade, o risco de se ser mal entendido ou de o leitor ficar-se por uma leitura literal (por exemplo, ao usar-se a ironia que consiste em dizer o contrario do que se pensa). É um risco que tem de se correr, ainda que, como profissionais do humor, devemos tentar evitá-lo (não é fácil, porque, em muitos casos, a possibilidade de que se compreenda a vinheta vem determinada pelo contexto que, em teoria é partilhado pelo emissor e peloo receptor da mensagem… coisa que com a internet e as novas tecnologias actualmente nem sempre ocorre…).
OMS - O mestre Raphael Bordallo Pinheiro disse que o humorista deve ser a oposição aos governos e oposição às oposições. ¿ Crês que é possível?
Kap - Possível não sei, mas creio que é necessário!
OMS - ¿ Que temas gostas de abordar? ¿ Que temas não te permitiram abordar?
Kap - Os humoristas de imprensa trabalham sobre uma matéria que é a actualidade. E a actualidade não pode ser escolhida, é o que é: os políticos são os que são, os atentados são o que são, os problemas políticos e sociais são o que são e como moldam a actualidade devemos trabalhar com eles, gostemos ou não. O que eu elejo é o enfoque: interessa-me que as minhas vinhetas sejam úteis, que sirvam para fazer reflectir, para abrir pontos de vista distintos ou apresentar as coisas de outra forma. Nos periódicos em que trabalho creio que posso abordar qualquer tema, incluindo os mais difíceis… mas, às vezes, temos de usar o engenho para ser subtil e conseguir plenamente os meus objectivos, que é fazer mais reflectir do que rir.
OMS - ¿ Sentes alguma diferença entre o humor que produzes hoje e o que fazias quando começaste a trabalhar nesta área?
Kap - Sim, na verdade, sim! Quase trinta anos de profissional… Quando começas, queres ser muito transgressor, muito irreverente. Tens pressa em mudar tudo, com uma grande ambição criativa, ao mesmo tempo com uma enorme segurança, causada pela total inconsciência e desconhecimento da vida. Com os anos, tornei-me mais reflexivo, mais profundo, ganhando insegurança, perdendo ambição e pressa. Descobri que todos os «chistes» já alguma vez, alguém os fez, e que é muito mais difícil encontrar uma boa ideia e desenhá-la bem. 
OMS - Todas as ideias são tuas ou falas com colegas jornalistas sobre os temas? Qual o teu percurso nos periódicos? 
Kap - Eu trabalho absolutamente sozinho, com meus acertos e erros. Nos periódicos em que publico, depois de mais de vinte cinco anos creio que já começaram a confiar em mim e sinto-me cómodo.
OMS -  Olhando para traz mudarias algo no teu percurso de humorista?
Kap - Na verdade, não fiz muitas coisa que hoje me arrependa, principalmente no campo profissional, pois como já disse sou muito reflexivo.
OMS - Quantos livros já publicaste? 
Kap - De desenhos meus, devo ter publicado cerca de vinte e três e mais  dezanove com estudos, ensaios sobre revistas de humor, biografias de desenhadores, textos teóricos ou antologias sobre o humor gráfico. Na última década estive publicando quatro livro por ano (dois de cada), mas desde que nasceu a minha filha moderei e nos últimos anos só editei dois por ano…
OMS -  Usas o lápis ou só o computador? Que papel tem o computador na tua obra gráfica?
Kap - Ainda que o desenho original seja feito a lápis e pincel sobre papel, é certo que o trabalho final passa pelo computador. Tudo o que publico passa pelo computador que é uma ferramenta muito útil para o meu trabalho. 
OMS - Quando desenhas, ¿ pensas numa audiência específica de leitores, quer dizer, só para os catalães ou espanhóis ou procuras uma linguagem mais universal?
Kap - Procuro uma compreensão universal, apesar de, desde logo, ter na cabeça as condicionantes do leitor espanhol ou mais especificamente o catalão que é quem vê maioritariamente a minha obra. Mas sim, para mim o leitor é importante e por isso penso qual o tipo de leitor que irá ver o desenho e consoante os meios de comunicação em que irá ser publicado.
OMS - ¿ A proliferação de minorias com susceptibilidades, sem sentido de humor, afecta a tua criatividade?
Kap - Não. Eu creio que se deve defender em sério, o mesmo que se disse como anedota, pelo que se há quem não tenha sentido de humor, é problema seu e não meu. Antes, o desenhador de imprensa estava acostumado a publicar e ninguém se queixava, ou para fazê-lo, tinha que mandar uma carta ao periódico. Agora, todo o mundo tem voz,  pode faze-lo publicamente, sendo isso um avanço e temos que saber viver com isso.
 OMS - Diz-se que a imprensa está em crise e o mundo vê cada vez menos periódicos nos quiosques assim como a maioria deles tem deixado de publicar humor gráfico ¿ Isto tem te afectado? ¿ Que pensas do panorama informativo actual? 
Kap - É evidente que há uma crise sistémica nos meios de comunicação: o modelo de negócio que funcionou durante um século já não funciona. Os humoristas vivem dentro de um ecossistema da imprensa, de modo que, ainda que não queiramos e não dependendo de nos, a realidade é que a imprensa, tal como a conhecemos, está a desaparecer e o nosso oficio também… Temos que nos reciclar e procurar novas saídas, porque o humor nunca irá desaparecer. Na realidade, creio que o humor responsável, lúcido, é mais necessário que nunca.
OMS -  Se o humor é uma linguagem cultural especifica, com a «aldeia global» que a internet potenciou, quando fazes humor tens consciência que, sem querer, podes estar a ofender alguém de uma cultura muito diferente, noutro espaço do planeta? Por isso temos de refrear o humor ou é um facto natural por isso não nos devemos preocupar em demasia? Ou seja, é mais importante não ofender ninguém (o que é impossível) e assim calar toda a irreverência, ou manter o espírito humorístico como defesa da liberdade de expressão e pensamento, na nossa sociedade?
Kap - O importante é incidir na educação global. Quanto maior é a educação, maior é a tolerância e o humor é uma válvula que mede o grau de tolerância de cada sociedade. Há que entender que às vezes o humor pode ferir. Temos de aprender a aceita-lo, porque a realidade fere muito mais que uma anedota. Nesse sentido, creio que é importante que os humoristas se mantenham firmes em defender as suas convicções, porque todo o terreno que se perca frente à liberdade de expressão vai custar muito a recuperar.
 OMS - Vivemos num tempo em que o burlesco domina o quotidiano, em que a comicidade vivencial, num falso optimismo metrosexual, não obriga as pessoas a parar, ver, pensar sobre a realidade. ¿ O que é que o humor pode fazer para despertar as inteligências humanas adormecidas no supérfluo, nas selfies, no individualismo…?
Kap - É certo que há um humor que banaliza tudo, que serve de evasão e que se usa para alienar a população, convertendo-os em consumidores acríticos, tirando-lhe capacidade de raciocinar e tomar o controle de seus actos e suas vidas. Está omnipresente na televisão, publicidade, imprensa e na internet. Frente a essa banalização, creio que o humor crítico tem um papel importante. O humor responsável, o humor que não procura apenas agradar a fazer rir, mas fazer pensar e fazer despertar a consciência. É nessa luta que devem estar os humoristas de hoje.



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